7.11.19

 


Deo Christi | Deuchriste | Deocriste

A origem do topónimo

 

Ao longo dos tempos, as palavras vão sofrendo alterações na sua estrutura morfológica causadas pela sua evolução etimológica ou por adulteração popular (etimologia popular) ou outras. Os topónimos também passam, naturalmente, por essas alterações.

A toponímia que faz parte da onomástica1 é uma ciência de interesse histórico-cultural que se dedica ao estudo dos nomes próprios dos lugares, à sua origem, formação e evolução. A sua investigação requer um elevado grau de exigência e erudição, uma vez que reclama uma elaboração demorada de recolha das diferentes formas do topónimo que existiram através dos tempos, pesquisando, para isso, documentos antigos e determinando a sua cronologia. Não é meu propósito fazer, aqui, um estudo académico, mas sim, movido pela importância que o assunto merece, tentar encontrar uma fundamentação baseada em tombos, registos das inquirições régias e outros documentos oficiais que comprove a autenticidade e legitime as diferentes alterações na evolução da grafia do topónimo Deocriste.

Referindo a pequena diferença morfológica do topónimo em título, ela irá ser abordada, mais abaixo, com o imprescindível detalhe e a exigida autenticidade, explanando a transição de Deucriste Deocriste, efetivada em documentos oficiais, pela primeira vez, e já na nossa contemporaneidade (1964).  

No entanto, e com a profundidade e seriedade que o estudo exige, não deixarei de referenciar as outras transformações que o topónimo conheceu desde a sua origem.

 

Após consulta de arquivos distritais, atas da junta da freguesia e outros registos já referenciados, será apresentada uma sustentação rigorosa das diversas mutações que o referido topónimo sofreu, desde a sua origem. Sublinho, no entanto que, no estudo da génese e evolução de alguns topónimos, as alterações na sua grafia podem estar baseadas em documentos de autenticidade duvidosa e que os tabeliães, escribas e copistas cometiam os seus erros ao alatinar alguns nomes ou se deixavam mover pelas variações fonéticas na linguagem popular existente. Algumas fantasias de interpretação, criando, por vezes, lendas de compreensão fácil, mas plausível e que acabavam por ser adoptadas pela comunidade, eram também muito comuns: (eu vi Ana - Viana).  Deocriste não é um desses casos.

 

A forma mais antiga, século XI, de designação deste lugar (ecclesia)2 era formada por dois segmentos escritos em latim medieval e que evidenciavam uma orientação divina e litúrgica: Deo Christi. Esta designação é invulgar, mas também notável, demonstrando o prestígio que era atribuído a esta freguesia no seio da comunidade cristã.

Alberto Antunes de Abreu,3 reputado historiador e mestre em Ciências Documentais, refere: “No censual do bispo D. Pedro (o primeiro bispo da Sé de Braga restaurada após a dominação muçulmana, portanto, no fim do século XI e que foi estudado pelo Cónego Prof. Dr. Avelino de Jesus da Costa4, consta o pagamento que a ecclesia de Deo Christi devia saldar ao bispo: 2 moios de trigo”

Esta designação tem no seu primeiro segmento o dativo Deo da declinação latina Deus-Dei e que evoca o nome Deus; o segundo segmento Christi é o genitivo da declinação latina Christus-Christi e que evoca o nome Cristo. Uma vez que a mais antiga designação da freguesia ou paróquia (ecclesia) já evocava o nome do Divino Salvador (Jesus Cristo) é interessante verificar que a autoridade eclesiástica lhe juntou o mártir oriental São Mamede como seu patrono que era invocado para a doença dos animais, com relevância para o gado bovino e ovino que, por aqui, abundava e, naquele tempo, constituía uma importante fonte de rendimento. De novo, Alberto Antunes de Abreu refere: “O aparentemente mais intrigante é que a evocação do Divino Salvador não tenha obscurecido o hagiónimo São Mamede, como seria de esperar para a nossa teologia. ... No território de Deocriste, o que teria havido fora a concorrência de duas ecclesiae, uma da invocação de S. Salvador e outra de S. Mamede, que absorveu a primeira, ao ponto de transformar a outra em mero topónimo: ecclesia de S. Mamede do lugar de Deochristi.”

 

 


 

Já nas inquirições do século XIII a designação da freguesia apresenta-se escrita de uma forma que me parece adulterada: Douchristi. Na realidade, não se encontra uma explicação lógica para a substituição da vogal e, pela vogal o no primeiro segmento Deo. Uma outra forma mais obscura e igualmente de explicação complexa surge no século XIV com a denominação de Adou Christi. Estas adulterações podem encontrar a sua explicação nas, já referidas, variações fonéticas na linguagem popular existente e que os escribas adoptavam. 5

No século XVI (1556), um tombo do Arquivo Distrital de Braga que apresenta um inventário de todos os bens da igreja, manifesta uma denominação muito curiosa do topónimo, sendo difícil encontrar uma explicação racional e fundamentada para tal alteração. Aqui, neste extenso inventário, o tabelião usou o topónimo precedido pelo seu orago São Mamede. No referido registo ele escreve: “... eu, tabelião Diogo Vallejo aceitei fazer o tombo de todas as propriedades e coisas pertencentes à igreja de São Mamede de Euchcristi, e aqui o escrevi.” Este desvio morfológico tão acentuado em relação ao primeiro topónimo, não segue nenhuma regra etimológica, nem se fundamenta em nenhum raciocínio lógico. Se os tabeliães que escreviam as inquirições e outros registos, costumavam latinizar os nomes das terras, aqui parece ter havido uma “deslatinização” do primeiro segmento Deo. Provavelmente, o nome da terra já teria sido transformado em Deuchristi seguindo uma derivação lógica, embora o tabelião tenha reproduzido uma adulteração popular ou sido influenciado por uma questão de fonética, ao fazer da letra D uma preposição de lugar de: freguesia de Euchcristi. Tendo o topónimo existido, realmente nesta grafia, é de admitir que a preposição de se tenha aglutinado a Euchristi dando origem a Deuchristi, mais tarde a Deuchriste e, finalmente, a Deucriste, designação que, em documentos oficiais, chegou até à nossa contemporaneidade, mais precisamente, até 31 de Dezembro de 1963.

Chegados aqui, passarei a explanar a primeira mudança oficial da designação Deucriste para a nova e actual designação Deocriste.

O topónimo Deucriste aparece, escrito desta maneira, na última acta da Junta da Freguesia, datada de 31 de Dezembro de 1963, como acima referido, e presidida, até esse dia, por Manuel do Lago Magalhães, havendo prova aqui anexada.

Já, no termo de abertura do livro de atas de 1 de janeiro de 1964 e na primeira acta de 5 de Janeiro do mesmo ano, dia da instalação da nova Junta da Freguesia, presidida por José Alves Meira da Rocha, a grafia do topónimo iria sofrer uma nova alteração. Tendo, esses registos documentais sido manuscritos por mim, Arlindo Pinto Meira, decidi, após autorização do novo presidente, modificar o topónimo para Deocriste (fotocópia desta ata, também, aqui anexada).

A intenção que me levou a converter Deucriste em Deocriste, em 1964, foi fundamentada na minha convicção de que a primeira sílaba ou segmento Deu (não se trata aqui de nenhum afixo) teria a sua origem em Deus. Assim sendo, e baseado no meu estudo do latim feito no Seminário, decidi alterar o nominativo Deus (Deus, Dei) para o dativo Deo que continuaria anexado, agora, ao vocativo Christe, simplificado em Criste, dando origem ao atual nome da freguesia: Deocriste

Contudo, a minha convicção de outrora não é a minha convicção de hoje. Embora a designação Deocriste esteja mais próxima do nome medieval Deo Christi, é minha opinião que a denominação mais ajustada do topónimo seria Deucriste, tendo em conta a sua evolução etimológica, ao longo dos tempos, como acima referenciado.

Ciente de que este assunto possa ter outra apreciação, esta foi a minha análise sustentada na investigação  feita e fundamentada nas provas documentais aqui apresentadas.

 

Arlindo Pintomeira

artista plástico | ensaísta

 

1 - https://pt.wikipedia.org/wiki/Onomástica

2 - assembleia de fiéis, lugar de reunião ou de uma assembleia, igreja", pelo lat. ecclésìa,ae "assembleia, reunião, ajuntamento dos primeiros cristãos, a comunhão cristã, igreja, templo."

 

3 -  http://www.bivam.pt/autor/alberto-antunes-de-abreu/

     http://worldcat.org/identities/lccn-nb2002030160/

4 -  Cónego Prof. Dr. Avelino de Jesus da Costa 

     https://www.santuariosenhoradapaz.pt/2017/01/19/con-avelino-de-jesus-da-costa-gigante-da-nossa-cultura/

 

 5 - 1220, De termino Douchristi, de Sancto Mamete, T. de Aguiar de Riba Lima

      1258, Parrochia  Sancti Mamrti d Ouchcristi, J. de Aguiar 

      1290, Freguesia de San Mamede Deucristi, J. de Barcelos

      1320, Ecclesia Sancti Mametis de Adou Christi, T. de Aguiar de Neiva

      1372, EcclesiaSancti Mametis Doucresti, T. de Aguiar de Neiva

      1528, Douchriste, T. de Aguiar de Neiva

 

 

Referências a Deocriste na documentação medieval do Arquivo de Braga,  com os nomes da freguesia, desde as inquirições do século XIII até ao Livro dos benefícios e comendas.

 

Tombo do Arquivo Distrital de Braga que apresenta um inventário de  todos os bens da igreja de São Mamede de Euchristi

 
                                                                           Parte inicial


     

                                                             ...continuação






                       Acta da Junta da Freguesia de Deucriste (31 de Dezembro de 1963)




Termo de abertura do livro de actas de 1 de janeiro de 1964 e a primeira acta de 5 de Janeiro do mesmo ano, dia da instalação da nova Junta da Freguesia de Deocriste