30.11.14


Interiores

Moisés de Lemos Martins
Sociólogo / Professor da Universidade do Minho
Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS)

Foi Walter Bejamin o primeiro a dar-se conta, nos anos trinta do século passado, que a obra de arte perdera a aura de original único e irrepetível. Nela não radicava mais a fonte de um thesaurus de significação. As nascentes indústrias culturais do cinema e da fotografia vinham imprimir às imagens o carácter profano de formas tecnicamente reproduzidas, impunham-lhes um circuito comercial, aproximavam as artes visuais das artes do palco, convertiam-nas em comunicação de massas.
A pintura segue este mesmo caminho: permanece nela um vínculo carnal e orgânico, vitalista, mas o seu espírito não é mais essencialista, nem elitista, passando a ser moldado por esta cultura profana, que tem nas máquinas de fabricação de imagens o seu suporte. Em vez da procura de um universal estético, a arte deambula agora pelas convulsões da experiência moderna, emparelha com a comunicação de massas e encena o mundo dos objectos do quotidiano, reutilizando as técnicas da fotografia, da publicidade e do design gráfico.
Pintomeira exprime este movimento. Surrealista desde finais dos anos sessenta, mas sobretudo nos anos setenta, fez depois uma multifacetada evolução, em que predominam as influências do grupo COBRA (justaposição das letras iniciais das cidades de Copenhaga, Bruxelas e Amsterdão), e também o experimentalismo figurativo sobre o contorno, vindo a aproximar-se progressivamente, já neste século, da Pop Art, de que é hoje uma figura maior.
No seu traço, a pintura deveio uma arte profana, que multiplica os vínculos com a fotografia, e sugere a pintura de cartazes, as colagens para anúncios publicitários, os desenhos de anúncios de produtos, não sendo mais o reduto de uma essência codificada pela representação do artista, nem uma actividade para o consumo de uma elite. Na pintura de Pintomeira não é apenas o figurativismo estético que permite ao artista a comunicação com o grande público. Pelo exercício apurado das técnicas publicitárias e do design gráfico, nunca como hoje, também, ressumou na sua pintura o quotidiano da cultura de massas, em claro desafio ao hermetismo abstraccionista da arte moderna.
Tendo iniciado em 2000 a ‘Nova Linha', momento em que começam a notar-se-lhe influências da Pop Art e do Design Gráfico, Pintomeira filia-se mais e mais nestas correntes estéticas, sob a influência dos pintores David Hockney, britânico, e Tom Wesselmann, americano.

O tema ‘Interiores' inscreve-se nesta última fase do artista.
Percebemos em ‘Interiores' que não são apenas os humanos que têm um momento de esplendor, um "eterno instante". Também os objectos o têm, seja enquanto protótipos, com a ‘griffe' de uma marca comercial, seja enquanto modelos na passerelle, ou então como manequins em montra, muitas vezes "corpos sem órgãos", segundo a expressão de Antonin Artaud, corpos sem boca, nariz e olhos, mas sempre com pele, porque corpos erotizados, com sex-appeal, corpos estilizados em silhuetas gráficas, mas que constituem uma espécie de fusão do humano e do inumano.
Existe hoje na pintura de Pintomeira este esplendor dos objectos, uma poética que inscreve o humano naquilo que o não pode ser. O seu sistema de objectos faz-nos pensar numa autopoiesis, que age no mundo como uma unidade autónoma que se auto-engendra.
A composição de ‘Interiores' é minimalista. As cores são fortes, contrastantes, e tendencialmente primárias (branco e preto como cores neutras; além destas, vermelho, azul e, em vez do amarelo primário, o ocre). Os espaços são sempre apresentados em apontamentos simplificados, sem grande investimento no jogo de sombras e com formas quase geométricas, onde apenas a figura humana foge ao traço recto dos objectos. Pintomeira traça as principais componentes das peças e introduz pequenas parcelas de desenho, umas vezes pontilhado, outras às riscas, e ainda em linha recta ou circular, de modo a definir melhor um detalhe de janela, cortina, candeeiro, tapeçaria, carpete, ou mesmo de figura humana. A sua capacidade de síntese sobressai, por outro lado, nas vistas exteriores, que são aliás raras nesta fase do artista. A figura humana, por sua vez, dá quase sempre, apenas, a escala do desenho, sendo por regra drasticamente reduzida ao contorno. Representada muitas vezes a preto e branco, mas também a azul e preto, e ainda a ocre, nela podem todavia sobressair uma gravata a azul, o design dos sapatos, o recorte das abas do casaco, o rouge dos lábios. A pose é a situação mais habitual: sentada, destacando-se a mão no braço do sofá e a perna cruzada, no caso de uma figura feminina, ou então as mãos, juntas lado a lado, de dedos estendidos e penduradas nos joelhos, se se tratar de uma figura masculina; de braços cruzados; de mãos nos bolsos, com uma mão na anca e outra no cabelo; diante de uma tela, com um telemóvel no ouvido. Sugerindo a pose de um modelo na passerelle, ou então de um manequim numa montra, quando não se apresenta como imagem sobre tela, no caso de um retrato, a figura humana parece por vezes uma encenação fotográfica, ou então uma personagem cinematográfica. A combinação da figura humana, tanto com formas definidas de objectos, como com formas indefinidas, aparentemente planas, sem volume, cria uma tensão dramática convocando a atenção do espectador.
Neste sistema de objectos sobressaem o palco, a tela e a encenação.
O palco de um jarrão, de um cesto de papéis, de um bengaleiro, de um candeeiro suspenso do tecto, ou de um outro bibelot com ‘griffe' - estamos a falar de peças de design.
O palco dos espaços alcatifados, assépticos, das montras comerciais ou dos escritórios de vendas - falamos de espaços aparelhados para em si mesmos constituírem instalações de arte.
O palco de uma figura de mulher de perfil, sentada à mesa, solitária, de olhar pensativo diante de uma mesa vazia, num ambiente cor de cinza, sugerindo uma fotografia, ou então o quadro de uma peça levada à cena
A tela com um busto feminino desnudado, de costas, em que todavia uma ligeira torção dos ombros e da cabeça permite fazer sobressair o rosto.
A tela às riscas, na horizontal, em tons de cinza, em que se inscreve a preto um enorme algarismo sete, e se inscreve também, num plano mais próximo, uma figura de mulher, apresenta-nos sugestões múltiplas: de desfile em passerelle, de pose fotográfica, de personagem cinematográfica, de manequim encenado.
A tela às riscas, na horizontal, em tons de rosa, com uma figura de mulher, vestida de preto, às riscas igualmente horizontais, sugere que a figura humana é a passerelle de si mesma.
A encenação de um busto de mulher, em posição frontal, com o olhar distante e ligeiramente em oblíquo, sugere um retrato, podendo todavia imaginar-se uma escultura.
A encenação de uma figura de mulher sentada, em posição frontal, com as mãos na cara e os ombros apoiados no tampo de uma mesa, apresenta uma figura feminina em pose serena, apesar do seu total enclausuramento, acentuado pela janela fechada, sem horizonte, nas suas costas, pelos livros meramente decorativos, também fechados sobre o tampo da mesa, pelo jarro vazio de flores, de certa maneira igualmente encerrado na sua inutilidade funcional, e pelo desenho pontilhado de linhas curvas e rectas que dramatizam o carácter claustrofóbico do local. Serenidade, pois, dado o facto de a simplicidade dos objectos trazer dinâmica e um certo conforto íntimo à vida humana.
A encenação de um telemóvel, que é um instrumento-fetiche da sociedade de consumo.
A encenação de cadeiras e sofás, e de um sapato de mulher, exibidos como peças de design, como protótipos de uma marca comercial.
Este sistema de objectos, representados em palco e exibidos num espectáculo a cores, como elementos de um complexo jogo de linhas tracejadas e de contrastes, sugere-nos os não-lugares da actual sociedade de consumo, lugares anónimos, lugares de passagem, lugares reverberantes de cor e luz, que constituem momentos de emoção estética, cuja dramaticidade é acentuada pela composição teatralizada dos modelos, manequins ou personagens.
Existe hibridez nas silhuetas que figuram corpos, meio fotografias, meio protótipos, meio manequins, meio personagens, meio esculturas. Por outro lado, tratando-se de objectos erotizados, dir-se-ia que ‘biotecnologizados', estes corpos maquinam em nós sensações e emoções, como que nos tocando a pele. Estamos, é certo, do lado de cá do palco, mas estamos também de frente para o espectáculo da exibição dos objectos, acabando por nos descobrirmos igualmente híbridos, feitos de uma amálgama que com eles nos imbrica.
Podemos dizer, ainda, que híbrida é, além disso, a composição dos espaços. O surpreendente cortinado suspenso na parede, o rigor do contornos dos objectos, o pormenorizado desenho da grade de ferro na janela, a exactidão figurativa dos objectos e dos corpos que mobilam o espaço, são combinados com o contraste de insólitas manchas de cores tendencialmente primárias, que parecem nascer por si mesmas, o recorrente e enigmático desenho do algarismo sete (uma espécie de reminiscência da sabedoria judaico-cristã, ou então, de cabalística chave na porta de entrada de não se sabe que mundos), o irregular pontilhado de uma linha recta que intersecta uma linha ovular, com sugestões de um sonho de papagaio de papel, e enfim o inusitado mas saliente contorno na parede de um detalhe de pano estriado.
E são híbridos, finalmente, estes espaços em que a visão do seu interior, permite divisar igualmente o seu exterior, com um mundo da vida, figurado lá fora, depois de franqueado o espaço intermediário de uma grade de ferro, situada na parte de fora de uma janela aberta, que tanto separa como aproxima os dois espaços. Com efeito, em contraste com o mundo dos objectos no interior, é uma vez figurada no exterior a ramagem de uma palmeira que se ergue num horizonte azul, e também é figurado um repente de pássaro ‘naïf', em "liberdade livre" de voo azul.
Em ‘Interiores' são raros, todavia, estes espaços que articulam o interior com o exterior. Nesta fase estética, marcada pela Pop Art e pelo Design Gráfico, Pintomeira descreve, de um modo geral, lugares enclausurados em si mesmos, sem linhas de fuga nem horizonte. Este procedimento obedece aos princípios da Arte Minimalista. Ao privilegiar o espaço de exposição, o artista cria uma obra que se situa entre a pintura, a escultura e a arquitectura. Este espaço, simultaneamente contínuo e descontínuo, assenta na autonomia do mundo interior e não parece conceber qualquer exterior. Mas não é inconcebível que esta paisagem possa ser também percebida do exterior, embora o interior fique necessariamente escondido pela fachada.
Talvez o aspecto mais surpreendente da composição gráfica de ‘Interiores' seja o jogo de linhas curvas, dobradas, que intersectam linhas rectas. Entre as linhas curvas tem um lugar de destaque o algarismo sete. A linha curva, dobrada, constitui na filosofia barroca leibniziana a possibilidade de compreender o universo que nos envolve e o princípio das forças que organiza, de acordo com uma multiplicidade de pontos de vista. A dobra vai até ao infinito e apenas pode ser apreendida por uma série cujo número é ele próprio infinito. O número sete é em ‘Interiores' esse número de série. Passe a sua ressonância judaico-cristã, o número sete é uma dobra constituída por um ponto de inflexão, ou de inclusão, sobre uma linha recta, para dar lugar a uma curva. A curva em que consiste o número sete é na obra de Pintomeira uma ode à matéria, que ninguém pode apreender na sua integralidade.
Em conclusão, podemos dizer que nesta poética da composição artística, em que consiste ‘Interiores', Pintomeira isola as unidades mínimas da composição, tentando aproximar-se, o mais que pode, das formas de vida contidas na encenação dos objectos. Não se interrogando, hoje, sobre a origem da vida, nem sobre o modo como ela surge, Pintomeira apresenta em ‘Interiores' as tensões que lhe permitem manter-se coerente com o seu percurso artístico, reunindo ao mesmo tempo as condições de possibilidade da sua própria metamorfose para novas mutações e hibridações.

Moisés de Lemos Martins
Sociólogo / Professor da Universidade do Minho
Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS)