28.12.14


Exteriores & Interioridade

José Luis Ferreira
sociólogo, escritor, investigador de arte | Membro Académico Ind. IAA/AIE – International Association for Aesthetics

Em (quase) tudo, a nossa contemporaneidade será, inevitavelmente, uma das antevésperas da arqueologia de um Futuro incógnito, um estádio indefinido e obscuro, sobre o qual pouco nos interrogamos, na aceleração crónica do calendário vigente, ainda, nesta Nave de Homens e Mutantes, similares antropomórficos (doutro modo vestidos e auto-locomóveis?) das novas formas de vida que, eventualmente, possam vir a (re)povoar as superfícies desérticas e os escombros erodidos do Presente, num devir revolutivo, dominado por novos deuses e mitos, em espaços de um Tempo premonitoriamente imaginado pela science fiction que, nem a tecnociência, nem a memória dos filósofos retardarão …embora a antecipem, ocasionalmente. Há milénios.
Nenhuma suposição, estatisticamente construída por elucubrações da racionalidade, ou através de conjecturas (especulativas, emocionais, meditabundas ou sonâmbulas), parece – na actualidade – dar satisfação às exigências mentais do Conhecimento e do Saber, enquanto direito cultural, individual ou psicossocialmente adquirido, como coisa (ou bem), singular ou colectiva, de uma individualidade convencional, comum e civilizada (cada vez menos convicta e, religiosamente, umbilical ou antropocêntrica).
No pressuposto de um estádio mediano da consciência, a ignorância – humildemente assumida por alguns humanos (supostamente mais lúcidos), dos quais a covardia me exclui – pode afectar o meu entendimento e deverá ser responsabilizada pela postura deslumbrada, ou pela sensação de um déjà vu inidentificado, que me afecta, quando viajo pelo universo pictural de Pintomeira.
Um universo sincrético, de perguntas respondidas – emersas de (suspensas, ou agarradas a) uma forma plástica-e-visual estática e explícita – através de um léxico intemporal, o vocabulário de uma escrita, feito de imaginário e signos alfanuméricos, do qual ressaltam, imbuídas (ou impregnantes), figuras (i)memoriais de uma virtualidade, onde se simboliza uma reflexão latente e (quase) descritiva, da era dos extremos1, das falsidades históricas do último milénio2, da ociosa implosão cultural do ocidente3 e dos vícios sociais particulares de uma sociedade urbana pós-industrial e (quase, também) geometricamente (des)organizada…
Pintomeira compõe, constrói e elabora esse universo, segundo um plano de ordenamento subjectivo, um projecto aparentemente simplista em que a figuração sintética, minimalista e plana (com as cores primárias das artes gráficas, do design, da banda desenhada), se estilizam, como simbiotas paralisados, criados a partir de valores de precisão (quase) fotográfica, alto-contrastantes e equalizados pelo contorno das formas, da silhueta, do caricatural figurinista, do manequim, do modelo, da nature morte… fabricados pelo caleidoscópio elemental da sua paleta.
Alguns especialistas4 que me precedem na observação e na edição de estudos analíticos e de oportunas apreciações sobre a sua obra – nomeadamente em benefício singular deste meu pronunciamento (mais admirativo do que) pretensioso – muito contribuíram para o enquadramento e para a avaliação que faço, do seu trabalho artístico.
Aquilo que mais fascinante considero, porém – em torno do delírio morfológico e colorista mais atraente e, incontivelmente, explosivo – é (para mim) a sua capacidade de síntese (aglutinante e catártica) onde parece arrecadar, potencialmente, a memória ecuménica da estética e das milenares “técnicas do fazer” da Humanidade, desde os primitivos às remotas civilizações mesopotâmicas (em particular a egípcia), como às culturas hinduístas e sino-nipónicas …ou, até às (ditas) pré-colombianas, a cuja significatividade iconológica, monumental e documental me permito associar-lhe importantes afinidades ônticas.
Elejo, por isso, a interioridade potencial da sua obra, para arrogar-me, ainda, o suposto direito de pautar um (re)enquadramento da sua obra, secundarizando as várias propostas de uma afiliação mais perdurante – hoje maturada e autónoma – a influências (por contacto ou convivialidade) quer com artistas e colegas, afectos ao grupo CoBrA5, quer com os surrealistas que, em Lisboa, terão marcado as suas mais firmes convicções e alicerçado o seu aprendizado técnico e académico-escolar, prosseguido em Paris e Amsterdão, não obstante as relações de mais profunda proximidade que, efectiva e, auto-reconhecidamente, o pintor estabelece, com uns …e outros, para além daquilo que – nele e na sua obra – suplanta, reiterada e, intensivamente, algumas outras posturas, mais deambulantes, indecisas, ou polimórficas, emergentes da controvérsia praxística de uma complexa e multifacetada Pop’Art6, traduzida pelo antagonismo público e académico, polemicamente protagonizado, por dois críticos7 árbitros da modernidade, entre as derivas do expressionismo neofigurativo e o abstraccionismo informalista, em confronto por uma hegemonia espúria.
No estádio actual – e, no período das últimas décadas – Pintomeira adquire, com efeito, um sentido artefactal escrupuloso, de rigor deliberado, (quase, senão híper) perfeccionista, no esmero (quase, também) insuperável e, dominante!, da mais exigente meticulosidade oficinal, resolvendo preocupações subjectiva e, objectivamente, relacionadas com a representação figurativa e o seu enquadramento estético e sócio-ambiental.
A sua linguagem pictórica, criada a partir de evidências imagéticas contextuais ou, deliberadamente, (des)contextualizadas, adquire-se (ou provém) de um constante e requintado exercício radical de exploração pangeométrica, buscada em pressupostos íntimos duma génese anímica e (re)invencional da imagem de alto contraste, com o objectivo da sua transposição, sob pretextos de equilíbrio óptico, obedientes a um doseamento compositivo secreto: quer na harmonia, quer no contraste das cores, à luz de um néon’realismo mitigado… onde vejo, compulsivamente, reflectida, a dissolução (quase) inédita de um desenho vocacional (puro, ou congénito) de origens remotas simultâneas (como referi) …egípcias, indostânicas e afro-ameríndias, numa reconciliação singular e quimérica da revolução telúrica ancestral que desfez a Pangeia primeva e determinaria as fronteiras interoceânicas, hoje artificialmente superadas, dos actuais continentes!
…a regularidade linear do risco, expandido ao traçado largo, recto ou curvilíneo… a acoplagem da sinalética, do pictograma, da carga simbólica e determinante cultural – do semáforo – na Aldeia Global8, onde não se perde o sentido das [...] «coisas sólidas e voláteis»9 [...] coexistente, dentro e fora (no interior e no exterior), de tudo quanto é belo, na existência das coisas, naturais ou artificiais…
Daí, o eu admitir que deva considerar-se, enquanto ponto de vista estrito e, unicamente metodológico – taxonómico, atávico, ou pragmático – uma qualquer diferenciação essencial entre Exteriores Urbanos e Interiores Domésticos, na obra pictórica do pintor… independentemente do facto de – no singular – essa caracterização poder diagnosticar, com toda a legitimidade, identificações espaciais, da informação visual, ou das coordenadas específicas (de conteúdo técnico e localização do ponto de observação autoral), em âmbitos do estritamente (quase) físico que, no meu entendimento, apenas restringiria a profundidade e o conteúdo, íntimos, ou a supremacia da interioridade conceptual que atribuo, generalizadamente, às peças constitutivas da obra autoral (que conheço) de Pintomeira.
Desde meados do séc. XX, até à actualidade, a heterogeneidade das variáveis psicoculturais tem sido a única constante, entre a perceptividade potencial humana (intelectual-emocional) e a capacidade cognitiva (racional-sensitiva) que temos vindo a pretender equacionar, no sentido da formulação e traçado de uma linha, convincente e coerente, à admissibilidade de uma lógica historicista de compatibilidade cronológica e, generalizadamente, susceptível de aceitação, à luz do pensamento crítico, entre intelectuais e artistas, pretendendo sustentar-se, teimosamente – não obstante a sua inviabilidade evidente – um carácter disciplinar e metodológico que parece manter-se, internacionalmente, (quase) imutável e vigente, apesar de anacrónico, desde finais do séc. XVIII, ou inícios do séc. XIX…
Só assim se admitiria que «a morte da arte»10 pudesse ter sido decretada sem sucesso e que, afinal, esse sentido nocional perdure, impondo a sua sobrevivência, entre tantas mutações.
Conquanto os valores da Estética acusem alterações e modificações, evolutivas ou radicais – e, diametralmente, opostas à ditadura das verdades estabelecidas e das convenções temporariamente imutáveis – a funcionalidade, o funcionalismo social e o sentido (des)contínuo (in)útil ou (dis)funcional das Artes Plásticas e Visuais, prevalecem de mãos-dadas, na (in)consequência imediata que, delas, possa, porventura, resultar, para o imediatismo socioeconómico de qualquer presente, tão (in)visível à lupa mais atenta, quanto susceptível de descodificação possa tornar-se, em perspectivas analíticas …do Futuro.
Nesta mesma perspectiva focal de uma leitura possível, de epifenomenologias do Passado – através da interpretação e recodificação de obras de arte (artefactos produzidos por humanos, em circunstâncias de inspiração estética, dificilmente referenciáveis) – se deu início a esta dissertação sobre (ou a propósito) da obra de Pintomeira, tendo sido meu objectivo transcrever-vos – à la minute – algo daquilo que penso do seu discurso e dos inúmeros percursos que considero encriptados nas peças que, nesta mostra, se exibem e expõem, à sensibilidade e critério dos seus potenciais observadores-reagentes ou (porque não?) indiferentes… quer ao que este escrito pretende associar-se-lhe ou – com um (por mim) decretado ‘mau gosto’ – se aplicado às obras que se patenteiam, desta colectânea!
Não é ocasional nem negligente, não é mimética nem seguidista, a pintura que aqui se vê construída e concluída, de forma muito elaborada, não obstante o autor persiga a simplicidade, buscando a síntese, numa figuração que tanto se aproxima da escala mural de uma monumentalidade que, só entre nós – e, hoje! – se estranha, ainda, não ter sido mais procurada, para integração na arquitectura… exterior e urbana que, ela própria subentende, pressupõe e revela, como do habitat humano na contemporaneidade portuguesa, plasmado numa forma original de expressão urbana, onde se estampam belos registos murais que documentam singularidades e estereótipos marcantes e peculiares do quotidiano actual.
O processo de representação e as formas mitigadas ou minimalistas de Pintomeira, têm tão raros paralelos na História da Arte Contemporânea (quer portuguesa, quer europeia) o que, numa óptica comparativa – aliás de razoável ‘bom tom costumeiro’ neste género de apreciações (soit disant) críticas(?) – implicaria escassas citações e referências, não obstante remeterem para notabilizados antecessores seus – posteriores à escala do anonimato monumental, no grande ornato arquitectónico, na documentação miniatural da ilustração, em manuscritos arcaicos – ou, ainda e, também, reflectidos na recente espontaneidade criativa, no automatismo vulgarizado dos grafitti… onde pintura é, invariavelmente, escrita!
Aqui chegados, não faria qualquer sentido que fossem esquecidas, ou ignoradas, as linguagens que lhe possam ser visualmente mais idênticas, ou similares, cuja estrutura e forma poderão ser-lhe associadas, quer pela caligrafia desenhística, quer pela projecção pictórica, sendo mais evidente uma suposta proximidade com o francês Fernand Léger11, ou com os portugueses Francisco Relógio12 e, mais vagamente, Câmara Leme, Nikias Skapinakis, Joaquim Rodrigo, Eduardo Nery (nas tapeçarias e isometrias) ou, mesmo, João Abel Manta e Sobral Centeno. De um ponto de vista mais remoto e, em acepções particularmente relacionadas com temáticas de natureza proto-rural folclórica, ou histórico-evocativa, poderão encontrar-se-lhe, eventualmente, afinidades estruturais e compositivas, tanto com os portugueses13 Almada Negreiros e Manuel Ribeiro de Pavia, Paulo Ferreira, Tomás de Mello (TOM), ou até, Estrela Faria …tanto como com Le Corbusier14 ou, inclusivamente, certos autores emergentes do Grupo De Stijl e da Bauhaus ou, mais recentemente, de L’horlucope, ou do Mûr Vivant15 (dos anos 50/70), em Paris, senão mesmo outros, de menor notoriedade, remissivos, a uma lateralidade mais distante, como a pintura expansiva derivada da ilustração gráfica, parentalmente distinta da Pop’Art (como citado), nos packages e pattent foods da promoção cinéfila de Hollywood (que, só agora, refiro)…
EXTERIORES são – indubitavelmente – os motivos desta exposição. Íntima e secreta é a fonte interior, que a inspira.

José Luis Ferreira
sociólogo, escritor, investigador de arte | Membro Académico Ind. IAA/AIE – International Association for Aesthetics



1 Expressão cooptada do título de um livro incontornável do historiador Eric Hobsbawm, “AGE OF EXTREMS - The short Twenttieth Century: 1914-1991” (1994) 2 Juízo decorrente de conteúdos dos livros “MILLENNIUM”, do historiador Felipe Fernández-Armesto (1995) e “IL CEMITERO DI PRAGA”, do filósofo e semiólogo Umberto Eco (2010)
3 Noção emergente de um ensaio de antecipação de Pierre Thuillier (1927-1998), “LA GRANDE IMPLOSION” que remete para as conclusões obtidas por um Group de Recherches, constituído nos Alpes, em 2077, para estudar as causas da autodestruição do Ocidente, entre 1999-2002. 4 Moisés de Lemos Martins, Arlette Salgado Faria, Egídio Álvaro, Alberto A. Abreu e, sobretudo, Carlos Lança (ao qual devo a indução para o grau de importância da sua obra, então quase imberbe e ignorada)5 ARTISTES LIBRES – 1.ère Série du Bibliothèque de COBRA [JORN (Asger)], textos de Michel Ragon, Jean Laude, Luc Zangrie, Edouard Jaguer e Ch. Dotremont, sobre obra reproduzida dos artistas fundadores e afectos ao movimento: Pedersen Alechinsky, Karel Appel, Atlan, Bille, Constant, Corneille, Doucet, Ferlov, Gilbert, Gudnason, Heerup, Jacobsen, Jorn... 6 neologismo introduzido, pelo crítico inglês Lawrence Alloway (1954), para identificação de produções culturais com incidência popular na civilização ocidental, predominantemente oriundas dos USA.
7 Clement Greenberg (1909-1994), autor de "'AMERICAN-TYPE' PAINTING" (1955); e Harold Rosenberg (1906-1978), autor de "THE AMERICAN ACTION PAINTERS" (1952).8 conceito premonitório estabelecido na década de 60, por H. M. McLuhan (1911-1980): dele impende o sentido nocional de globalização, numa acepção comunical ecuménica, em tempo real, resultado da inovação tecnológica (informação/comunicação /mobilidade acelerada em meios de deslocação e transporte). 9 «hard and soft stuff» expressão transcrita, in “Art at the turn of the Millenium” (B. Riemschneider&U.Grosenick/Taschen) ...por Bill Viola (Queens, NY, USA, 1951), criador plástico-visual, audiovisual e performativo contemporâneo de notoriedade mundial, representado na National Gallery de Londres, no Guggenheim Berlim e NY, no Matropolitan Museum of NY, etc.
10 Arthur C. Danto (Michigan, 1924) filósofo e crítico de arte americano. Professor de filosofia da Universidade de Colúmbia (NY) autor da “Crítica da Razão Plástica”, anuncia o fim paradigmático da Arte, após Andy Warhol, ter assinado a ‘criação ou plágio’(?) das Brillo Soap Pads Boxes (1964).11 Jules-Fernand-Henri Léger (1881-1955) ...segundo Carolyn Lanchner (1932) Léger (refugiado nos USA durante a II Guerra Mundial), influencia, também, entre outros, Stuart Davis, Willem de Kooning, Philip Guston, Milton Resnick, Louise Bourgeois, Richard Lindner, Arshile Gorky, Roy Lichtenstein, Andy Warhol, Brice Marden, Frank Stella, Tom Wesselmann e James Rosenquist. No prefácio dum catálogo, esteta e cineasta Jodi Hauptmann escreveu que Léger "encontrou a essência do moderno na cidade" e cita a pintor: "A vida actual, mais fragmentada e rápida de mudanças do que em épocas anteriores, aceita como seus, meios de expressão sintética e de divisionismo dinâmico."
12 Francisco Relógio (Beja,1926-1997,Lisboa). Dedicou-se, além da pintura (desde os anos 40), à cenografia, à cerâmica, desenho e azulejo. Integrou o movimento Neo-realista português. 13 ...alguns dos autores portugueses citados são detidamente referenciados num importante estudo crítico-analítico e histórico-documental de Alexandre Pomar “MAP - As pinturas da Sala de Trás-os-Montes”
14Le Corbusier, Charles Edouard Jeanneret (na representação figurativa humana patente nos seus Desenhos Papéis e gravuras) 15 Le Mur Vivant n°50, 4è trimestre 1978, p. 40-43, 9 ill. [...] de l'Urbanisme, CSTB Paris, 1950-1960, 3 vol., volume 2, fiches 736 – ref. a MICHEL ECOCHARD, enquanto urbanista e chefe de grupo, integrado na Compagnie internationale pour la production, para uma obra mural em Pechiney