22.12.11

Percurso artístico




Em Lisboa, Pintomeira adoptou o Surrealismo, em 1970, certamente influenciado por alguns artistas deste movimento, com quem conviveu. Produz alguns trabalhos na área do surrealismo, cujo manifesto tinha sido apresentado em Paris, já em 1924, pela mão de André Breton, onde o definiu como: “um automatismo psíquico puro, através do qual se propõe expressar, seja verbalmente, seja por escrito ou por qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento, na ausência de todo o controle exercido pela razão e sem alguma preocupação estética ou moral.” Baseado na recusa de todas as elaborações lógicas do espírito e nos valores do sonho e do irracional, o surrealismo, acabando por abranger, também, o dadaísmo, edificou um enorme “império” de expressão artística e literária.   Em Portugal, como movimento, ele só viria a surgir, tardiamente, em 1947, tendo como seus mais destacados fundadores, Cândido da Costa Pinto, António Pedro, DaCosta e Mário Cesariny.
A partir do final de 1972, encontrando-se já em Amesterdão, Pintomeira produz os seus trabalhos surrealistas mais assumidos, como a Esfinge, o Sonâmbulo bailarino alado ou a Discrição. Entre 1972 e 1978 ele ignorou
A Discrição
outras correntes vanguardistas que fervilhavam em Amesterdão e, influenciado pelo belga René Magritte, continuou a deambular pelo surrealismo. Esta corrente de expressão estética, nunca tendo existido, como movimento, na Holanda, não criou, como consequência disso, uma cultura marcadamente surrealista nesse país. Pintomeira não demorou muito tempo a constatá-lo. A sua primeira exposição na capital holandesa, realizada na Gallerie Jolijst em 1974, embora tendo provocado uma evidente curiosidade, não acolheu qualquer manifestação de grande entusiasmo. O oposto aconteceu, em 1978, aquando da realização da sua exposição na galeria Entremonde, em Paris, o lugar sagrado do surrealismo.
Para a produção da sua obra surrealista, o artista utilizou diversos temas como fontes de inspiração, no entanto, dois temas aparecem-nos de uma maneira recorrente: a mitologia greco-romana, em A Leda e o cisne, Apolo e Daphne, Io e a nuvem, Júpiter e Antíope e a bíblia em Regresso do
Leda e o Cisne
filho pródigo
, A Pietá, e a Crucificação. É conhecido que, para além das influências de René Magritte, ele, tendo convivido, embora fugazmente, no início da década de setenta com o pintor holandês do mágico realismo Carel Willink, e conhecendo bem o seu trabalho, tenha também dele absorvido algumas influencias. O mesmo poderá ter acontecido com o, também holandês e também mágico realista, Pyke Koch, que Pintomeira muito admirava.

Há artistas que, uma vez ligados a um estilo na sua expressão criativa, muito dificilmente o abandonam, durante toda a sua carreira. Os motivos tanto podem estar relacionados com uma questão de coerência como com uma questão de conforto. Se olharmos para o conjunto da obra de Pintomeira, notamos imediatamente o oposto, concluindo que ele mudou, com frequência, não só o tema, mas também a maneira como o expressava, permanecendo sempre, em todas essas transmutações, fiel à sua assinatura, e à sua linha.
Assim, após a sua participação no Salon 1978 realizado pela Societé des Artistes Français, no Grand Palais de Paris, com o nome de Metamorphoses, homenageando o pintor surrealista belga René Magritte, decidiu terminar a sua fase surrealista. Não olhou para trás, não se transformou, mas, mudando de carruagem, partiu para outras descobertas. Durante os primeiros anos da década de oitenta, o tempo da euforia e da excitação comercial e especulativa, quando tudo parecia ser arte e tudo se comprava e se vendia, Pintomeira, não querendo entrar naquele carrossel, encetou, calmamente, diversos experimentalismos, especialmente em trabalhos sobre papel: desenhos a aguada, desenho com pó de grafite, serigrafia monotípia sobre papel de fotografia, feitura de posters de cinema, ilustração, etc. Há hoje poucas imagens de todo este vasto trabalho que se encontra, na sua quase totalidade, presente em diversas colecções privadas. Esta fase nunca constituiu um interregno ou um tempo de espera, mas, muito concretamente, preencheu e corporizou uma passagem de um estilo | tema   para o seguinte. Algumas imagens existentes foram escolhidas para ilustrar esta passagem.

A Paisagem nunca foi um tema que o entusiasmou ou despertou a sua atenção. Nunca se deixou arrebatar com as obras dos mestres do realismo ou do naturalismo cuja intenção era “imitar” a natureza, pintando cenas da vida real ou recriando paisagens naturais. Nem mesmo os impressionistas, que ele muito admirava, o seduziram para a paisagem. No entanto, e apesar de todo esse alheamento por essa expressão artística, Pintomeira, com alguma surpresa, não deixou de a trabalhar, nos fins dos anos oitenta. São paisagens produzidas a partir de fotografias que ele tirou no sul de Portugal,
Alentejo
numa das visitas que, então fez, ao seu país. Serão cerca de três dezenas e, todas elas fazem hoje parte de colecções privadas e institucionais. Elas representam, quase na sua totalidade, paisagens alentejanas, nunca tendo sido sua preocupação, muito longe disso, querer reproduzir a natureza. Notamos que o artista dedicou mais atenção ao espaço, à forma e à expressão cromática, não se notando nenhum dos elementos típicos e quase sempre presentes neste género de trabalhos artísticos: as árvores, os animais, e as pessoas. Somente, uma ou outra mostra-nos, de uma maneira muito escondida, a presença de algumas casas ou um tronco de árvore, usado ali como uma figura geométrica, a linha vertical. Para além da já referida expressão cromática, houve, na sua construção, uma ponderação assumida e uma atenção muito forte dada ao espaço ou espaços e à
Alentejo
profundidade. A sua composição, parecendo ser concebida a partir de uma ideia geométrica, ela não mostra nenhum respeito pela perspectiva ou por outras regras académicas vigentes.

O crítico de arte Donald Meyer, escreveu em 1995, em Amesterdão, no prefácio do livro Contornos: “Pintomeira é um artista sempre fiel à sua assinatura, não querendo, eternamente, repetir-se.” Também o historiador e escritor Alberto A. Abreu o refere no seu texto “Da manipulação dos objectos à sua desmaterialização” onde escreve em 2006: “...Artista inquieto (e irrequieto), Pintomeira foi sempre tentando várias experiências, logo desde a sua fase mais rica que foi a "surrealista”. Uma observação semelhante, mas mais recente, em 2016, é feita pelo catedrático de historia contemporânea, Ramón Villares, no catálogo Cutouts: “Na longa trajectória artística do pintor encontram-se várias etapas, conceptualmente diversas e audazes no plano técnico. Um dos seus traços essenciais é, justamente, a sua capacidade para experimentar, para encontrar novas formas e novas linguagens.” Finalmente, Michael Amy, Professor de História de Arte no Rochester Institute of Technology, USA, escreveu: “Após 50 anos de carreira, Pintomeira continua a deliciar-nos, tirando novos truques daquele seu baú cheio das suas próprias idiossincrasias acerca da arte e da vida. Pintomeira pertence a uma distinta linha de artistas camaleões, que continuam a inovar em função dos casos que permanecem em movimentação.”
Quando começamos a analisar a sua obra elaborada durante a década de noventa (1992-1999) pudemos confirmar, inteiramente, aquilo que os distintos críticos acima mencionaram. Pintomeira, movido por uma ânsia e uma assumida determinação para inovar, debruçou-se sobre a utilidade e a dinâmica do contorno. Perceptível em Sandro Botticelli, abandonado no impressionismo, e assumido em Picasso, Pintomeira deu-lhe autonomia, libertando-o da sua mera função de risco de fronteira ou de muleta do desenho e converteu-o numa presença dominante e dominadora. Este novo tema a que chama Contornos reafirma o seu distanciamento das correntes em voga, enfeudadas ao sistema que, determinado em demolir o que restava da arte moderna, apelidando-a de contemporânea, ficou com pouco mais do que um amontoado de pedras ou ready mades espalhados pelos chãos dos museus. Pintomeira, um não alinhado, não prestava vassalagem ao mercado, menosprezava a mercadoria, e caminhava pelas salas do Stedelijk Museum de Amesterdão, próximo do seu atelier, em passo apressado e indiferente às peças instaladas, às pedras colocadas no chão e aos neon’s acesos, procurando um Karel Appel, um David Hockney ou um Eric Fischl. No seu atelier, em Amesterdão, próximo dos museus, ele trabalhava o seu novo tema de uma maneira enérgica e acalorada. A manipulação do contorno na sua pintura figurativa e os resultados obtidos faziam-no acreditar que aquele caminho estava a conduzi-lo a uma nova expressão estética e formal à volta da figura. Os contornos tornaram-se mais largos, multiplicaram-se e
Canção Cor de Rosa
alongaram-se, ultrapassando a fronteira do seu propósito convencional. Eles passaram a construir um espaço, agora notório e impositivo e que passou a constituir, de uma maneira indiscutível, a presença de uma nova área, ao lado da figura ou dos objectos adjacentes. Aquele enredado e complexo conjunto de espessas linhas que se libertaram da sua função eternamente secundarizada e escravizada, parece ter sido lá colocado de uma maneira arbitrária ou gestual. Nada de mais enganador.  Esse conjunto de contornos que percorre toda a superfície onda a obra acontece, obedece a uma observação e construção racional e objectiva. Essas densas linhas são, muitas vezes, colocadas, contornando a figura, sendo seguidamente retiradas e de novo posicionadas de forma a alcançar a harmonia e o equilíbrio pretendidos. O artista teve aqui também outra preocupação: o equilíbrio cromático. Ele é conseguido
Madona
na maioria dos casos, apoiado na escolha de cores primárias e trazidas para a tela em combinações complementares. Essa preocupação pode ser observada nas obras: Madona, Canção cor de rosa e Mulher recostada e contornada.
Este tema Contornos, que consideramos uma experiência inovadora na sua concepção artística, abrange cerca de oitenta trabalhos em diversas técnicas e sobre diversos suportes, fazendo, quase todo ele, hoje parte de colecções públicas e privadas.

O século XX, preenchido pelos diversos movimentos, correntes, manifestos, grupos, e vanguardas que muito enriqueceram a Arte Moderna, estava a chegar ao fim. Pintomeira terminava também a sua permanência de quase trinta anos em Amesterdão e regressava a Portugal.
Em 1999, no seu novo atelier, no norte do país, iria nascer um novo tema: Nova Linha. Alberto Abreu refere, de novo no seu ensaio “Da manipulação dos objectos à sua desmaterialização” deste modo, este tema: “A desmaterialização dos objectos foi o caminho seguido por Pintomeira numa nova linha onde o contorno acabou depois por se reduzir a um filete. As imagens dos objectos aparecem estilizadas quando não reduzidas a silhuetas sem cor nem respeito pelos outros objectos do quadro, e deste composto de texturas que Ihe conferem ritmo, irrealidade, estatuto de formas puras.”
O artista conhecia bem os trabalhos do grupo CoBrA e a sua linguagem pictórica. Os membros mais destacados deste grupo foram Karel Appel, Asger John, Corneille, Lucebert e Pierre Alechinsky. A capital holandesa, onde Pintomeira viveu durante muitos anos, e onde conheceu Corneille, foi o centro artístico e intelectual desse movimento fundado em 1948 e reunindo artista de Copenhaga, de Bruxelas e de Amesterdão, tendo o acrónimo CoBrA nascido da aglutinação das iniciais dessas cidades. O seu novo tema Nova Linha apresenta abordagens estéticas e formais muito próximas de alguns trabalhos desse grupo, que revelou uma linguagem de experimentação onde imperava a liberdade, o simples e o espontâneo, mostrando manifestações da arte primitiva e algumas influências do surrealismo. Na Nova Linha, Pintomeira, rompendo com a concepção estética dos Contornos, iniciou uma nova obra figurativa, agora mais depurada e fortemente estilizada. Para além da figura, o artista recorre
Pintura XCIV
muitas vezes à representação de aves, peixes e outros animais, assim como às formas circulares e ovais interpretando sóis ou luas, e outras quadradas, rectangulares ou simplesmente linhas utilizadas para a construção de um equilíbrio formal. Aqui, a concepção e elaboração da obra é instintiva, directa e muito pouco pensada, não tendo o peso da ponderação racional ou a meticulosidade e a minúcia usada nos Contornos. Mesmo assim, a obra não deixa de ser demoradamente trabalhada, adquirindo texturas espessas, sobreposição de tons, raspagem e areamento. Algumas figuras apresentam-se ainda contornadas, Pintura LXII e Pintura XXXVI, outras mostram-nos desenhos sobre um fundo abstracionado em Pintura XXVI e Pintura XCI
Pintura LXII
e ainda outras incluem colagem como em Pintura XCIV e Pintura XXVIII. A Nova Linha constitui um conjunto de cerca de uma centena de trabalhos elaborados em diversas técnicas e sobre diversos suportes: acrílico, técnica mista, desenho a grafite e feltro, colagem, cerâmica etc. Embora este tema tenha sido produzido, de modo contínuo, entre 1999 e 2007, o artista dedica-se, ainda hoje, se bem que esporadicamente, à feitura de outros Novas Linhas, sendo agora, na sua grande maioria, acrílicos sobre papel.

A partir de 2003, Pintomeira, enquanto trabalhava na Nova Linha, iniciou um novo tema que intitulou de Faces. Esse trabalho, realizado em simultâneo, foi possível porque a figuração se apresentava muito semelhante e, ao contrário da Nova Linha, maioritariamente obras de grandes dimensões sobre tela, aquele era produzido, nesses primeiros anos, em acrílicos sobre papel. Na realidade, estes primeiros trabalhos, acrílicos
Faces
sobre papel, confundem-se facilmente com os do tema anterior e, para poder diferencia-los será necessário fazer uma observação atenta e concentrada em relação aos detalhes ornamentais que ladeiam a face. Poderá dizer-se que o artista, enquanto se empenhava em construir a nova linguagem Nova Linha iniciada em 1999, ensaiava, paralelamente e com pouco esforço, uma outra, muito próxima e que viria a distanciar-se, definitivamente, da Nova Linha, anos mais tarde, em 2010.

Entretanto, no ano de 2009, Pintomeira encontra-se já no seu novo atelier de pintura e estúdio de fotografia, em Braga para onde se tinha mudado em 2007. Nesse ano, ele vai trazer para o seu espaço criativo um género de “neo pop art” influenciado por alguns trabalhos de David Hockney e outros de Tom Wesselmann. O propósito é aliciante, mas também desafiador. O novo tema foi baptizado de Interiores. O sociólogo e escritor Moisés de Lemos Martins, professor da Universidade do Minho, escreveu no catálogo que acompanhou a exposição “Interiores . Exteriores” realizada na Galeria da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa: “A composição de ‘Interiores' é minimalista. As cores são fortes, contrastantes, e tendencialmente primárias (branco e preto como cores neutras; além destas, vermelho, azul e, em vez do amarelo primário, o ocre). Os espaços são sempre apresentados em apontamentos simplificados, sem grande investimento no jogo de sombras e com formas quase geométricas, onde apenas a figura humana foge ao traço recto dos objectos. Pintomeira traça as principais componentes das peças e introduz pequenas parcelas de desenho, umas vezes pontilhado, outras às riscas, e ainda em linha recta ou circular, de modo a definir melhor um detalhe de janela, cortina, candeeiro, tapeçaria, carpete, ou mesmo de figura humana. A sua capacidade de síntese sobressai, por outro lado, nas vistas exteriores, que são aliás raras nesta fase do artista.” Este conjunto de dezasseis obras em acrílico e técnica mista sobre tela e de grandes dimensões, mostram-nos momentos de intimidade passados numa sala de estar, onde se encontram personagens, ora sozinhas ora acompanhadas, nada comunicativas, solitárias, parecendo enclausuradas em espaços sem janelas. Outras há, onde a ligação com o exterior parece existir através da construção de janelas ou portas mas,
Interiores 5
apesar de ser notado um azul celeste, tudo parece opaco, não se presenciando qualquer existência de luz natural, havendo a percepção de um ambiente de retiro ou reclusão, Interiores 5 e Interiores 11. O conceito da composição e da forma sugerem encenações teatralizadas onde as personagens se afiguram mudas e imóveis, apresentando-se, umas sentadas em sofás ou cadeiras, e outras de pé. A sala de estar, aqui, parecendo simular um palco, está preenchida por cadeiras, sofás candeeiros,

Interiores 11
carpetes, vasos, etc. Outros elementos, recorrentemente utilizados pelo artista para o equilíbrio da composição formal, preenchem os espaços da obra: linhas, traços largos e densos, tracejados lineares ou outras formas geométricas.
O espaço onde tudo acontece é uma sala de estar de qualquer habitação. E o que acontece? Parece nada acontecer, embora paire no ar uma certa expectativa de que algo poderá vir a suceder. A personagem feminina, de desenho exacto, sempre vestida de preto, estática e espectante, assemelha-se a um manequim de montra, a um modelo de passerelle. Toda a encenação remete-nos, também, para os outdoors publicitários urbanos, podendo concluir-se que o artista, tendo ligações ao design gráfico, por ele se deixou influenciar. A isso se refere Moisés de Lemos Martins, no catálogo acima mencionado: Nesta fase estética, marcada pela Pop Art e pelo Design Gráfico, Pintomeira descreve, de um modo geral, lugares enclausurados em si mesmos, sem linhas de fuga nem horizonte. Este procedimento obedece aos princípios da Arte Minimalista. Ao privilegiar o espaço de exposição, o artista cria uma obra que se situa entre a pintura, a escultura e a arquitectura. Este espaço, simultaneamente contínuo e descontínuo, assenta na autonomia do mundo interior e não parece conceber qualquer exterior.” Este tema Interiores será, dois anos mais tarde, complementado com o tema Exteriores. Sobre ele, iremos debruçar-nos, mais à frente, para uma análise detalhada.

E será durante o ano de 2010, que Pintomeira apresenta, de maneira manifesta, essa nova expressão artística que iniciou em 2003, de uma
maneira experimental, mas que é agora assente em novos princípios estéticos e conceptuais, assumindo que este Faces se diferenciava da Nova Linha, uma vez que toda a atenção é colocada somente nas faces femininas, de densos contornos e de grande dimensão, estando excluídas outras representações.
No catálogo da exposição de Faces e Outras Faces no Museu Pio XII em Braga, em 2010, o seu director, José Leite Abreu, escreve: No itinerário de muitos sobressai o seguidismo – que não a fertilidade; sobressai a falta de aventura, a confrangedora ausência de criatividade, a segurança imobilista de caminhos que não ousam, o tédio de estradas nunca abertas à novidade. Outros há, porém, que aceitam inovar; que rompem com escolas e esquemas tradicionais; que pintam a realidade com cores novas, arrojadas, inconformadas; que ruminam a realidade até ao ponto de a transformarem numa realidade nova, numa auto-realidade. É quanto de essencial se me oferece dizer sobre o pintor Pintomeira.”
Aparentemente, estes trabalhos parecem ter nascido de uma simples e descomplicada elaboração. Mas, só aparentemente. Na verdade, a sua construção é morosa e muito trabalhada, podendo dividir-se em quatro fases
Faces
distintas. O artista começa por estruturar um fundo, colocando diversas camadas e usando recorrentemente tons de cinza. Sobre esse fundo ele agrupa diversos espaços, uns geométricos outros aleatórios, de um cromatismo equilibrado, utilizando quase sempre duas cores, umas vezes complementares, outras vezes cores vizinhas ou pertencentes à mesma família. Já aplicados no seu tema Nova Linha, aparecem agora, os pontos, os traços densos, as linhas “paralelamente” irregulares e, pela primeira vez ele introduz o tracejado, colocado em linhas rectas ou formas geométricas. Posteriormente, existe o aumento do fundo cinza através de uma subtração ou destruição dos espaços cromáticos antes pintados. Nesta fase de construção da expressão estética, ele parece estar ocupado na elaboração de uma pintura abstrata. Na realidade, um abstracionista poderia, uma vez chegado a esta fase, considerar a obra como terminada e pronta para ser exposta. Mas, Pintomeira sempre foi um figurativo e vai continuar a sê-lo. E
assim, o artista chegou ao momento de encetar a abordagem final, a figuração, a representação. Tudo se resume a um desenho simples de uma face feminina, às vezes, andrógena, executada em pinceladas enérgicas
Faces
trazidas em densos contornos pretos. Ela está poderosamente presente, ocupando grande parte da superfície do quadro. A expressão é contemplativa, de indulgência, de compaixão, levando-nos a fazer emergir da memória as madonas renascentistas.
Durante o ano de 2010, ele volta a surpreender o público com uma exposição de dez obras que, embora estando incluídas no mesmo tema Faces, o artista, considerando que elas apresentavam uma diferenciação suficiente na sua concepção formal, construtiva e técnica, decidiu desligá-las das anteriores e denominá-las de Outras Faces. Era a sua preocupação insistente de nunca se repetir. Num texto escrito pelo crítico de arte Egídio Álvaro pode ler-se: “O trabalho de Pintomeira caracteriza-se igualmente por uma procura permanente de um equilíbrio nas formas. Ele está sempre à procura de uma expressão plástica nova.” Estes dez novos trabalhos representam fotografias de rostos recolhidos dos media ou de uma
Outras Faces
pesquisa na internet. Passando por uma impressão digital de grande formato sobre tela, esta é posteriormente cortada e colada sobre a tela principal, havendo depois uma intervenção, já mais convencional, através da pintura acrílica e a introdução dos densos traços, linhas, formas geométricas e o tracejado. A fotografia, o design, a publicidade e a pop art estão, aqui, manifestamente presentes.

Como mencionamos acima, durante os anos de 2011 e 2012, Pintomeira vai trazer para o seu atelier os Exteriores. Um conjunto de dezanove trabalhos, sendo a maioria composta por acrílicos de grandes dimensões, caracterizados por momentos de exteriores urbanos, captados fotograficamente, mas, trazidos para a tela numa concepção estética e formal de imaginação livre, misturando as personagens com as sinaléticas do tráfico rodoviário, o grafismo dos números e das palavras e com os seus, já habituais, traços, tracejados, linhas, círculos e quadrículas. No catálogo da exposição “Interiores . Exteriores” realizada em 2011 na Galeria da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, a mesma já acima referida, José Luís Ferreira, sociólogo, escritor e investigador de arte, escreve: “Pintomeira compõe, constrói e elabora esse universo, segundo um plano de ordenamento subjectivo, um projecto aparentemente simplista em que a figuração sintética, minimalista e plana (com as cores primárias das artes gráficas, do design, da banda desenhada), se estilizam, como simbiotas paralisados, criados a partir de valores de precisão (quase) fotográfica, alto-contrastantes e equalizados pelo contorno das formas, da silhueta, do caricatural figurinista, do manequim, do modelo, da nature morte… fabricados pelo caleidoscópio
Exteriores 14
elemental da sua paleta
.” Exteriores reportam ou aludem a momentos do quotidiano urbano, mostrando personagens apressadas, atravessando passadeiras de peões, umas em trabalho e outras simplesmente em passeio, Exteriores 14 e Exteriores 2. É uma construção plana, sem qualquer perspectiva, havendo em alguns casos, a percepção de profundidade, sugerida pela disposição do traçado das passadeiras. A cor cinza, presente em todos estes trabalhos, remete-nos para o asfalto onde tudo se vai desenrolando, orientado ou desorientado por toda a mistura arbitrária da sinalética de proibição, obrigação ou simplesmente indicativa. Sendo, aqui, notório o poder de síntese do autor, a obra mostra-nos uma construção minimalista, reduzindo o ambiente vivido nas ruas urbanas a uma ou duas personagens que atravessam passadeiras de peões, não trazendo para o espaço da pintura os veículos motorizados, os edifícios, as estruturas ou os objectos da decoração urbana, encontrando-se, no entanto, todos eles,
Exteriores 2
subentendidos. Foi assim que ele concebeu toda a expressão estética e formal para esta sua obra, querendo que esta complementasse a outra, Interiores, colocando de novo, na tela, uma imagética próxima do design gráfico ou do outdoor publicitário. É, mais uma vez, José Luís Ferreira que o refere no catálogo já mencionado: “Não é ocasional nem negligente, não é mimética nem seguidista, a pintura que aqui se vê construída e concluída, de forma muito elaborada, não obstante o autor persiga a simplicidade, buscando a síntese, numa figuração que tanto se aproxima da escala mural de uma monumentalidade que, só entre nós – e, hoje! – se estranha, ainda, não ter sido mais procurada, para integração na arquitectura… exterior e urbana que, ela própria subentende, pressupõe e revela, como do habitat humano na contemporaneidade portuguesa, plasmado numa forma original de expressão urbana, onde se estampam belos registos murais que documentam singularidades e estereótipos marcantes e peculiares do quotidiano actual.” Toda esta encenação do quotidiano urbano apresenta-se, na sua construção estética, formal e compositiva, como momentos fotográficos cliché, sem qualquer vislumbre de emoção, sem qualquer estado de alma, dando a entender que as pessoas atravessam as passadeiras de uma maneira fugidia, sem nenhuma relação com o outro, querendo chegar a um destino que o espectador não consegue descortinar. Para o autor, a produção deste tema, tendo nascido de um trabalho muito elaborado, aturado,  construído e desconstruído para, finalmente,  ser assinado e apresentado ao público, ela constituiu um compromisso de complementaridade, assumido desde a conclusão de Interiores e que tinha de ser cumprido, a breve trecho.

Após a conclusão do tema Exteriores, Pintomeira passou os próximos dois anos, no seu estúdio, ocupado com outra linguagem estética: a Fotografia. Ela, embora faça parte integrante deste livro, não vai ser analisada neste espaço, ficando essa apreciação para outros críticos e remetida para outras páginas.
O ano de 2015 trouxe Pintomeira de regresso ao seu atelier de pintura. Tendo, uma obra sua pintada sobre tela, acidentalmente, sido danificada, ele decidiu, após a separação da tela do seu suporte, a grade de madeira, e após a ter recortado com uma tesoura, em várias partes, fazer uma colagem dessas parcelas. O resultado surpreendeu-o positivamente e acabou por fazer o lançamento do seu próximo tema. É indubitável que a associação com o trabalho do pintor francês Henri Matisse que, na última década da sua vida, entre 1941 e 1952, produziu uma grande quantidade de trabalhos originados numa técnica do corta e cola, existiu e transformou-se mais num estímulo do que numa influência. Esse vasto trabalho realizado pelo artista francês foi denominado de cut outs e consistia na utilização de dois simples materiais, papel e guache. A ferramenta era um simples par de tesouras com as quais Matisse recortava os papeis pintados, transformando-os, através do corte, em animais, plantas, figuras e outras formas, sendo, posteriormente, todos esses recortes colados num suporte consistente para que pudesse ser transportado e integrar exposições.
Pintomeira tinha encontrado um nome para o seu novo tema. Aglutinou as palavras do verbo (to) cut out e substantivou a agregação como Cutouts. Assim passou a ser chamada a obra que ele iniciou em 2015 e que resultou, até ao momento, na produção de vinte trabalhos. O autor utilizou uma técnica distinta, mais abrangente e mais elaborada do que a de Henri
Cutouts 12
Matisse. Ele pintou com acrílicos ou desenhou com lápis grafite as suas formas, na sua maioria faces, sobre uma tela não montada, usou seguidamente a tesoura para as recortar de uma maneira aleatória e, após ter ordenado, no chão do seu atelier, os recortes até atingir uma composição que lhe agradasse, essas parcelas foram coladas sobre a tela principal, agora montada em grade de madeira. Numa fase seguinte, as formas coladas e os espaços entre elas iriam ser trabalhados com tinta acrílica usando dripings, camadas, texturas, traços e linhas, conseguindo uma expressão estética que denunciava degradação, destruição, envelhecimento, surgindo na nossa memória a visão de pinturas murais, de frescos antigos, já em ruína, estragados pelo tempo e pela negligência do homem, restando da pintura original, somente alguns fragmentos, Cutouts 12 e Cutouts 16.
No catálogo editado para acompanhar as várias mostras dos Cutouts, o
Cutouts 16
catedrático de história contemporânea da Universidade de Santiago de Compostela e também Presidente do Conselho da Cultura Galega, escreve:
“Pintomeira possui perícia técnica, formação intelectual, conhecimento dos rumos nacionais e internacionais da pintura e, além disso, uma forte vontade experimental. Assim, chega a esta nova proposta na sua biografia, que é a série Cut-outs, inspirada na obra que o pintor Henri Matisse desenvolveu nos derradeiros anos da sua vida e que, em datas recentes, foi exposta em toda a sua amplitude nos prestigiados museus MOMA e na Tate Modern. Para Matisse, aquele projecto tinha sido uma solução crepuscular; para Pintomeira é, pelo contrário, uma nova experiência na maturidade da sua trajectória artística. Depois de indagar no surreal ou de conciliar a arte figurativa com a necessidade da identidade, que marcou boa parte da sua obra, agora trata de entender o mundo actual, no que o fragmentário, o reutilizado, mas também os recortes fazem parte do discurso da sociedade presente, dos seus desafios e dos seus medos.”
Este é o seu tema mais recente que continua a ser trabalhado no seu atelier. Tratando-se de um autor prolífico, experimentalista e inovador, Pintomeira irá, muito provavelmente, surpreender-nos nos próximos tempos, trazendo-nos uma nova expressão estética ou uma nova linguagem artística.

Leonardo Moniz
artista plástico

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