Mário Miranda, o Escultor . Pintor
Pintomeira 2020
Mário Miranda |
É muito provável que Mário Miranda, durante os seus tempos de berço, tenha tido a percepção dos cheiros dos óleos e da terebentina, uma vez que seu pai foi um conhecido pintor e um reputado restaurador de arte sacra. A sua apreensão das artes visuais foi precoce e a visão de um cavalete, um amontoado de tubos de óleo, pigmentos, pinceis e uma tela, nunca lhe pareceu uma miragem. Estando já familiarizado com todos esses materiais e transportando dentre de si o ADN da criatividade, só lhe faltava fazer o caminho, caminhando até ao encontro do seu atelier e iniciar os seus diálogos solitários com a tela.
Tendo feito a sua formação nesta área e já com algumas exposições no seu currículo, Mário Miranda decide percorrer e fazer mundo de experiências, de visitas e encontros com a arte, enriquecendo e amadurecendo o seu inato talento, carregando sempre, no alforge da sua mente, todos os materiais necessários para a feitura da sua obra prima.
Numa dessas viagens, Mário Miranda tomou a estrada do Norte e estacionou em Amesterdão, capital da Holanda. Eu já lá estava e o encontro era inevitável. Encontrei-o, em 1973, no seu atelier situado no edifício Kroombslot, próximo do Nieuwemarkt. Calmamente, ele debatia-se com uma tela colocada em cavalete, elaborando a figura, a forma e traços envolventes, em tons quentes e numa técnica sfumato ou mesmo chiaroscuro. A obra, muito trabalhada, ia nascendo através do uso de transparências e glacis.
Amesterdão 1973 | Mário Miranda no atelier de Pintomeira tendo, à esquerda, a sua obra |
Na
década de 1980, o autor regressa a Portugal. Desta vez, ele tomou a estrada
do Sul e escolheu o Algarve para dar continuidade à sua obra. Aquela terra
quente e luminosa poderia levá-lo a momentos de uma inspiração mais luzidia,
revelando obras de forte e vibrante cromatismo, como aconteceu com Vincent Van
Gogh, quando deixou Paris e partiu para Arles e Saint Remy, no sul da França.
Nada disso se verificou. Nas suas viagens pelo Alentejo, Mário Miranda encontrou o mármore nas minas de Estremoz, visitou o atelier do escultor João Cutileiro e regressou ao Algarve, já com uma nova linguagem plástica na sua mente. Encantado com aquela pedra de Estremoz, ele iria abandonar a pintura, tal como Michelangelo Buonarroti que, enfurecendo o papa Júlio II, abandonou, em certo momento, os trabalhos na Capela Sistina e partiu para onde gostava de estar, as minas de mármore em Carrara. Ao contrário de Michelangelo, Mário Miranda não conseguiu conciliar a pintura com a escultura.
Mário Miranda no seu Atelier |
Esta última linguagem de expressão artística capturou-o, definitivamente, e a pedra mármore rendeu-se ao seu talento e entregou-se às suas mãos para se deixar esculpir.
O seu atelier, num Algarve cheio de luz, preparou-se para receber blocos de pedra vindos das minas alentejanas que, a partir da técnica da cinzelagem, iriam ser transformados, primeiro em peças planas de pequena dimensão com uma figuração de alto e baixo relevo, progredindo para trabalhos de tamanho médio caracterizados pela junção de pequenos blocos elaborados e de tons diferenciados, rumando mais tarde para obras monumentais e para a realização de esculturas públicas destinadas à requalificação e embelezamento de espaços urbanos.
Celeiro do Algarve | mármore e aço . 2003 |
Ao trocar as tintas, os pigmentos, os pincéis e as telas, pelo cinzel e o escopro, as máquinas de corte, perfuração e polimento, Mário Miranda passou a habitar espaços mais abertos e de distantes horizontes, mais ruidosos e empoeirados, num labor mais físico, desbastando a pedra bruta numa técnica de cinzelagem para criar uma forma tridimensional, um volume no espaço com valor estético na sua expressão plástica. As suas mãos pesadas e quase rudes acariciavam, agora, o mármore, a pedra e o aço, com sensibilidade e energia como antes usava o pincel e as tintas para preencher uma tela branca sedenta das suas visões e da sua imagética.
Mário Miranda, artista inovador e experimentalista, passou a construir, desde há algum tempo, uma escultura assemblage, de grandes dimensões. Acumula no seu atelier materiais diferenciados que, na execução do trabalho, os vai ordenando, incorporando, agregando até alcançar uma estrutura/escultura admirável e chamativa na sua forma estética e saída do seu imensurável imaginário.
Estas peças, embora monumentais transmitem, na sua estrutura, uma leveza e transparência que contrasta com as sólidas e corpulentas esculturas encomendadas para projectos de embelezamento urbano.
A Fiandeira . 2019 |
Afirmamos acima que Mário Miranda não conseguiu conciliar a pintura com a escultura. Tal facto aconteceu no início da década de 1980, quando se deixou seduzir pela pedra mármore de Estremoz e, abraçando a escultura, deixou para trás a pintura, linguagem plástica que abraçara até então.
No entanto, nos últimos anos o escultor regressou à pintura, naturalmente, sem espanto e sem receios já que, os cheiros dos óleos e da terebentina entranhados durante a infância, nunca se dissiparam da sua memória olfactiva.
Com o seu já declarado experimentalismo, Mário Miranda reencontrou a tela numa abordagem a que ele próprio denomina de expressionismo gestual.
Utilizando pigmentos naturais em base de acrílico, o artista consegue efeitos notáveis e únicos, transportando-nos para visões de antigos frescos, deteriorados pelo tempo. As transparências e a técnica glacis aparecem aqui mais relevadas, oferecendo-nos efeitos de alta qualidade, evidenciando um figurativo desbotado, por vezes indecifrável.
Residencial Flamengo . 2017 |
Mário Miranda, o Escultor . Pintor, fazendo parte de um grupo de notáveis artistas não alinhados, alcançou uma obra conceituada e prestigiada que faz parte de inúmeras colecções públicas e privadas, com forte relevo para a escultura erigida em espaços urbanos ou inserida na natureza. Estas obras fazem hoje parte do desenvolvimento artístico da comunidade e do património cultural colectivo, convivendo com o indivíduo/cidadão e mantendo com ele um diálogo através dos tempos, para além do, não menos importante, embelezamento do espaço público urbano ou harmoniosamente integradas na natureza.
Este texto não segue o novo acordo ortográfico
Pintomeira 2020
Artista Plástico | Ensaísta