15.3.21


Galerias de Arte e Arte Dealers








Pintomeira
Artista Plástico . Ensaísta 

 

escrito segundo as regras do anterior acordo ortográfico


Em Abril de 1977, a directora da Israel Galerie Linka, situada no Prinsengracht, 690, em Amesterdão, Holanda, após ter analisado o meu portfólio, entrou em contacto comigo, propondo uma visita ao meu atelier, situado, também, na capital holandesa, para ver os trabalhos originais e aquilatar da sua qualidade. Aceitei a sugestão. Naquela altura, eu preparava uma exposição que iria ser inaugurada, na Galerie Entremonde, em Paris, em Fevereiro de 1978. 

A visita aconteceu passados alguns dias, tendo a directora da galeria observado, atentamente, cerca de uma dezena de obras já prontas para a mostra em Paris. Após a sua apreciação, e sendo esta do seu agrado, foi feita uma proposta para uma exposição, na sua galeria. As condições apresentadas foram as seguintes: feitura de um catálogo, vernissage, a presença de convidados, entre os quais estaria o embaixador de Portugal na Holanda, a garantia de venda de obras e a respectiva percentagem, 40%. Tudo isto correspondia ou ultrapassava as minhas expectativas. Só que o último requisito que me foi apresentado, acabou por me surpreender: o pagamento antecipado, à galeria, de 10.000 florins (então moeda holandesa), cerca de 5.000 euros, para suportar as despesas com a realização da exposição. Não aceitei tal encargo. Considerei que a percentagem sobre a venda das obras serviria para sustentar tais despesas, o que era habitual e me parecia razoável. Mostrando, espontaneamente, e sem qualquer entrave ou reserva, a minha indignação por tal aproveitamento financeiro imediato de 5.000 euros, declinei, frontalmente, o convite.

 

 
Nessa altura, era de grande importância cimentar a minha carreira artística, através de uma exposição numa Galeria conceituada de Amesterdão. Tinha consciência disso. Sabia, também, que a venda de algumas ou todas as obras expostas poderia suportar tal pagamento antecipado. No entanto, aquela minha desaprovação e consequente recusa, lançou, naquele momento, a semente, que mais tarde, deu origem a uma visão pessoal e a uma avaliação muito negativa sobre estas galerias e os seus art dealers: a suspeição e o desabono. Declaro que, apesar desta desagradável experiência, realizei, nos anos seguintes e com sucesso, algumas exposições noutras galerias. Estas, não ostentando tanto poder no mercado da arte e não praticando a cultura do lucro imediato, possuíam o ethos e o pathos na convivência, na relação pessoal e a competência na realização de exposições. No entanto, a experiência com aquela controversa proposta da Israel Galerie Linka de Amesterdão persistiu na minha mente, fazendo crescer a minha depreciação pelos galeristas e art dealers e o consequente desinteresse em mostrar os meus trabalhos nos seus espaços. 
 
 
Neste meu escrito, irei sempre fazer alusão àquele galerista que pretende ser o grande fazedor e lançador de talentos. Umas vezes, ostentando jactância e prosápia, outras vezes, presunção. Jean Clair1, membro da Academia Francesa,, escreveu: ... “a falta de cultura e de gosto de muitos directores de instituições (museus, galerias, bienais) deu origem a uma passividade e acomodação, criando uma situação onde a obra se reduziu a uma divertida espuma da arte”. O artista, aquele que trabalha para criar as suas obras, impelido por uma ânsia e entusiasmo legítimos para as mostrar a um vasto público, é secundarizado, como que proscrito perante a altivez e os falsos convénios feitos com o seu patrono. 
 
O nome da sua galeria (muitas vezes o seu próprio), as salas onde recebe o público e as suas paredes onde as obras estão expostas, constituem o seu sacrossanto e venerável tabernáculo perante o qual o artista deverá usar o genuflexório, reclinando-se e agradecendo o privilégio de ali poder expor. Estes emproados art dealers avisam, constantemente, o artista para a relevante função que as suas galerias desempenham na sua carreira e quão importantes eles são no seu sucesso, podendo, daqui inferir-se a menorização do próprio artista não validando a sua competência e a sua capacidade criativa. Como refere Rui Pedro Fonseca2,: “o artista não pode jamais beliscar quem o publicita ou quem o consagra: há, portanto, que saber jogar com os próprios limites da liberdade delimitados pelos agentes e pelas instituições.”
 
Estes galeristas, art dealers e seus correligionários fazem parte de um complexo sistema de mercado que, ao procurar orientar e regular o artista, acabam por impedir que ele se exprima e se desenvolva livremente. Além disso, estou certo de que, se ele não tiver essa pressão nem a intencionalidade de agradar ao mercado, o artista, na solidão do seu estúdio/atelier, provido da formação e capacidade técnica que obteve e munido das ferramentas que ele próprio adquiriu, poderá criar, sobre uma tela despida, a partir de um bloco de pedra bruta ou de outras matérias, uma obra de arte caracterizada pela sua assinatura, originalidade e unicidade. Uma vez mais, Rui Pedro Fonseca3: “A necessidade de total sobrevivência dentro do mercado da arte tende a conduzir o artista a produzir de modo a que o seu trabalho respeite determinados padrões morais e estéticos, tornando-se, involuntariamente ou inconscientemente, no porta voz dos seus compradores e protectores, cuja elevada posição não pode jamais ser beliscada.”
 
 
Digo que, nunca, algo de sublime foi criado sem paixão, liberdade e independência. Compreendo, embora com dificuldade, a comodidade e o conforto que um artista sente quando trabalha sob o amparo, embora fingido, e as incertas promessas do seu galerista. Acredito que, actualmente, nenhum artista queira ser como um Vincent van Gogh do seu tempo (Arles e Saint Remy). A procura pelo reconhecimento rápido, sem ter produzido obra para tal e a avidez pela fama fácil angariada pela submissão às regras do mercado impostas pelo galerista mercantil e seus comparsas, converte o artista num embuste e despe-o da sua autenticidade. No ensaio “É urgente autopsiar a bexiga da arte moribunda”4, escrevi: “este sistema que alimenta um dissimulado e enganoso ambiente artístico é, agora, capaz de transformar um qualquer “instalador” ou “constructor” numa pessoa famosa e endinheirada, mas é incapaz de fazer dele um artista”
 
 
O filistinismo de muitos galeristas, curadores e directores das instituições é notório e abrange, também, muitos críticos e fazedores de crónica artística fácil que vão ufanando e louvando os primeiros. Outros críticos de arte, parecendo mais independentes e mais acintosos, caminham, mesmo assim, de mãos dadas na mesma procissão, aparentando sublinhar que todos eles, quando palavreiam sobre o ambiente artístico, pensam ser este incompreensível para todos, excepto para eles, praticando o auto-elogio em grupo. Pateticamente, só eles sabem que só eles o compreendem. Alguns há que, caminhando sobre um asfalto diferente, me incentivam e entusiasmam a referir e a homenagear, aqui: entre outros, os americanos Clement Greenberg, David Hickey e Jerry Saltz, o francês Jean Clair, os ingleses John Berger e Julian Spalding e os portugueses Fernando Pernes, José Augusto França e José Luis Ferreira. 
 
 
 
Não querendo sair da essência deste ensaio, retomo o afirmado no início: a minha visão muito pessoal, formada no passado, sobre os galeristas, curadores e art dealers e sustentada na relação profissional (exposições) e na relação contractual e comercial (mercantilismo), tendo daí restado, como acima já mencionado, a suspeição e o desabono. A minha exposição na Galerie Entremonde, em Paris, em 1978, embora com razoável sucesso, terá suscitado os primeiros sinais de renúncia que, embora débeis, confirmaram, em termos de relacionamento e mercantilismo, a minha incredulidade percebida, alguns meses antes, na experiência tida com a Israel Galerie Linka, em Amesterdão. Durante os anos seguintes, os meus trabalhos seriam, de preferência, exibidos em diversos locais públicos e algumas instituições privadas sem fins lucrativos. No entanto, o distanciamento final do deplorável mundo dessas galerias, desses galeristas e art dealers, aconteceu somente em 2000, aquando da minha exposição “Outlines” na Gallery 66, na Stadhouderskade, em Amesterdão. A referida Galeria viria a fechar, poucos anos depois, segundo rumores de actividades ilícitas perpetradas pelo seu director.
 
 
No sentido estrito da cultura, da erudição, conhecimento e educação, é a existência de uma galeria de arte, importante, a não ser para um grupo elitista e alguns acólitos? Não é importante. Neste enquadramento, é um museu de arte mais importante? É muito mais importante. Qual é o propósito primeiro de uma galeria comercial? Na sua maioria, será vender obras de arte e daí adquirir benefícios financeiros. Nada de errado. Contudo, para isso precisará de artistas, uns convidados, outros com obras em consignação e outros com acordo contratual escrito, por vezes, muito complexo e de cumprimento duvidoso. Saliento que, normalmente, o galerista não tem capacidade técnica nem criativa para produzir obras de arte. 
São as galerias de arte (convencionais) dispensáveis? Não são, na sua generalidade. Não sendo dispensáveis, elas só serão úteis se tiverem acesso a obras de arte e a artistas que as produzam. E aqui começa o seu ponto crítico e uma conduta censurável. Os galeristas, art dealers e curadores de galerias, ditas de prestígio, com ligações a colecionadores e mercados habituais, e tendo na procissão o andor dos fazedores de crónica artística de adulação, colocam-se no altar da veneração ou na mesa do auto-elogio ou o elogio interpares, atribuindo-se-lhes o mérito da pesca de talentos ou a descoberta de brilhantes emergentes que, uma vez aproveitados e deixando de ser rentáveis, imergem na escuridão do mais profundo oceano. Existem duas relações distintas entre galerista e artista, embora, ambas com o mesmo fim: o primado do interesse comercial com a intenção de obter lucros rápidos e excessivos (mercantilismo). Cinicamente, alguns “experts” estão focados, exclusivamente, no mercado e nos benefícios financeiros.
 
 
Voltando às relações, temos uma  entre galerista de prestígio/artista A, a outra entre galerista de prestígio/artista B. Esta bipartição só define e, sempre em termos do especulativo mercado da arte, que um artista é mais cotado que o outro. O dito galerista de prestígio, muitas vezes, o filisteu da cultura, com ligações ao mercado ganancioso e, raras vezes, dotado de qualquer aptidão e critério apreciativo da obra de arte e, eventualmente, movido por força de uma relação pessoal, relação de favor ou empatia, decide valorizar a obra do artista A. Este, provavelmente, menos talentoso e com menor capacidade criativa que o artista B, entra, mais facilmente, com a duvidosa chancela do galerista, no circuito comercial artístico, dos colecionadores e no sinistro sistema instalado que o irá favorecer na escolha para a participação em bienais de prestígio, na aquisição das suas obras pela verba afecta ao Ministério da Cultura de 500 mil euros através da colecção de arte contemporânea e na atribuição de projectos para a realização de obra em espaços urbanos. 
 
Sobre esta última apreciação, trago aqui dois fiascos pagos com dinheiros do erário público: o enorme fracasso do cacilheiro Trafaria Praia de Joana Vasconcelos e a Linha do Mar de Cabrita Reis, este último duramente criticado e rejeitado pela população local e pouco ou nada louvado pela maioria do mundo artístico. 
 
Nos dias de hoje, museus e galerias influentes, raramente procuram os trabalhos do artista que, isolado no seu estúdio/atelier, tenta explorar aquela ideia ou visão que chegou à sua mente e, numa labuta física e intelectual, espera que, desse labor, nasça uma séria e meritória obra de arte. Ao proferir esta declaração, quero proclamar, com firmeza, que não sou anacrónico nem misoneísta, antes denuncio a falta de gosto e o já supracitado filistinismo dos responsáveis (galeristas, curadores, directores artísticos) desses espaços expositivos quando dão preferência à efemeridade de trabalhos indiligentes ou a qualquer desmesurado objecto, saído de um espaço industrial, produzido por carpinteiros, serralheiros e bordadeiras que, muitas vezes, só chama a atenção por ser gigantesco e nunca por ser inovador.
 
 
A galeria de arte privada e comercial, como espaço arquitectónico que mostra e comercializa arte, está já a caminho de dois séculos de existência, sendo, nesses tempos, dirigida por marchands d’art, verdadeiros connoisseurs, eruditos e entendidos em belas artes, algo que, raramente, acontece com os galeristas de hoje. Assinalo, como relevantes, naqueles tempos, a Goupil&Cie5, onde trabalhou Theodorus Van Gogh, irmão de Vincent Van Gogh, a Galerie Vollard6 de Ambroise Vollard que deu a conhecer obras de Paul Cezanne, Paul Gauguin, Henri Matisse e a Galeria Daniel-Henri Kahnweiler7, promotora do cubismo e que apresentou artistas como Pablo Picasso e George Braque. Estamos longe desses tempos. Mas, se a Galeria continua a ser um espaço arquitectónico onde se mostra e comercializa arte, e a Pintura é, ainda, influenciada pelas obras de Pablo Picasso e Henri Matisse, a maioria dos galeristas já não é hoje, lamentavelmente, “tão” connoisseur d’art.
 
 
 
Tendo, no início deste ensaio, afirmado a minha depreciação pelas práticas de certas e bem identificadas galerias e art dealers e o consequente desinteresse em realizar mostras nos seus espaços, onde exponho, então, as minhas obras? Com mais de uma centena de exposições individuais efectuadas, a sua maioria, e preferencialmente, foi mostrada ao público em espaços como, Museus Municipais, Salas, Casas ou Centros Culturais e Galerias de Instituições Privadas, sem fins lucrativos. Aos responsáveis por estes espaços expositivos, aqui, o meu agradecimento por terem recebido e exibido as minhas obras.
 
 
Sou um não alinhado, não presto vassalagem ao mercado e menosprezo a mercadoria, principalmente o ocioso e debilitado conceptual, as inúteis efemeridades instaladas, as construções industriais de dimensão gigantesca e outras encomendas feitas, pelo sistema, a artistas “construtores”, indolentes e farsantes, em tempos de desorientação e alienação no mundo da arte.



Pintomeira | 2020
pintomeiragallery.com

1 - membro da Academia Francesa, conceituado ensaísta, escritor e historiador de arte
2 - sociólogo, ISCTE-IUL“Entre o artista o patronato e a obra”
3 - sociólogo, ISCTE-IUL “Entre o artista o patronato e a obra”


3.9.20


 

Arte Digital | A Computação Gráfica nas Artes Visuais


Pintomeira

Artista Plástico . Ensaísta

 

No princípio era o computador. Era o tempo dos engenheiros, cientistas, dos algoritmos e das tecnologias. 

Na década de 1960, surge a computação gráfica e o cientista depara-se com a possibilidade de produzir imagens, iniciando, assim, uma nova abordagem conceptual que o levaria a pensar como conceber  arte em ambiente computacional.

 

                                                   Computação Gráfica  Ivan Sutherland usando o Sketchpad in 1962

 

O primeiro ensaio destinado  a conceber obras de arte com a utilização do computador ocorreu nos fins da década de 1950, quando o cientista e o matemático, ainda que de maneira ocasional, se depararam com essa possibilidade. Esses trabalhos representavam, na sua maioria, padrões geométricos, linhas e traços de caracterizações gráficas. Estava lançado o embrião para o advento da arte digital. Estas experiências iriam revolucionar o modo como a arte poderia ser criada, visualizada e distribuída. 

 

Nos anos posteriores, o cientista ao transmitir a sua experiência ao artista, este apoderou-se dessa possibilidade e, a partir desse momento, começou a produzir, agora de uma forma deliberada, as suas criações artísticas em modo computacional, embora ainda, num contexto do experimentalismo intencional. 

 

Arte digital - young nude
Young Nude  (primeira imagem digital . década de 60)
 Keneth Knowlton e Leo Harmon
 

Na década de 1960 foi iniciada uma revolução digital que, tendo alcançado o mundo da arte e chegado aos estúdios dos artistas, ela iria incentivar estes a criar novas manifestações de expressão artística e novas concepções estéticas  que reflectiam o seu tempo, o tempo da arte contemporânea, esta integrada num mundo com grande fluência de informações e inovações tecnológicas, derrubando barreiras no processo de laboração, no uso de novos materiais e diferentes suportes. Neste contexto, o suporte era virtual sem fisicalidade e os materiais e ferramentas eram programas específicos de software. Utilizando os ambientes gráfico-computacionais como meio ou fim, passou a estar ao dispor do artista digital um espaço incomensurável de possibilidades destinado à criação de uma obra de arte para ser exibida ou compartilhada em rede. 


Nunca tendo estado totalmente divorciados, a potencialização dos vínculos entre a ciência a tecnologia e a arte é agora uma evidência inequívoca e incontornável, formando uma trilogia simbiótica de largo espectro, perturbando e desorientando historiadores e críticos quando chamados a produzir escritos assertivos e confiáveis, sobre esta temática.

 

De um modo mais manifesto e abrangente, podemos deduzir que são consideradas obras de arte digital todas as manifestações de criação artística concebidas em ambiente gráfico computacional e obtidas através do uso de hardware e programas de software e sempre num espaço virtual. Simplificando, toda a prática artística que usa qualquer forma de tecnologia digital, quer no seu processo de criação ou no seu modo de apresentação, pode ser considerada arte digital.


Quando o alemão Wolf Lieser decidiu englobar neste género de arte todas as manifestações artísticas realizadas por um computador, tudo parecia demasiado simplicista e tornava-se claro que se começava a caminhar sobre um terreno movediço e buliçoso. O potencial e influência das tecnologias digitais nas várias linguagens de expressão artística e estética é significativo, no entanto, falta ainda fazer a análise irrefutável e apresentar estudos mais profundos para estabelecer critérios rigorosos com o fim de estabelecer fronteiras para definir que esta é uma obra de arte digital e aquela é um trabalho técnico/industrial de comunicação multimédia ou digitalidade de massas.

 

Um dos mais destacados pioneiros na área da computação gráfica, animação e arte digital foi o americano Charles Csuri1 que, já em 1964, decidiu transformar o computador numa ferramenta para os artistas. Pintor e, a partir de 1978, Professor na Universidade de Ohio, muito cedo ficou extasiado com o computador e as suas potencialidades como ferramenta para o desenvolvimento da arte digital, sendo um dos artistas mais reconhecidos e mais laureados nesta área. Grande parte do seu reconhecimento advém do seu empenho pesquisativo para introduzir figuração na linguagem da computação gráfica o que foi considerado um passo incentivador para o artista  marcar encontro com a arte digital.


Foi, em 1987, o fundador do Advanced Computing Center for the Arts and Design (Centro de Computação Avançada para as Artes e o Design) da Universidade de Ohio, destinado ao desenvolvimento da arte digital e da animação computacional. Charles Csuri foi, efectivamente, um distinto pioneiro na utilização do computador (computers & Graphics) para a criação de arte e animação e a sua obra veio acrescentar novas e brilhantes páginas ao livro da História da Arte


      The Charles A. Csuri Project at The Ohio University 1989



1 Charles A. Csuri Project | College of Arts and Ciences  

https://csuriproject.osu.edu/index.php/About/arthistor 

2 Charles Csuri: When I began working with the computer, I had to look closely at how it could be used within an artistic context.

3 – Charles A. Csuri Project | College of Arts and Ciences Advanced Computing Center for Arts and Design (ACCAD) 

https://accad.osu.edu/ 

 

Na aurora da arte digital, o artista alemão, Manfred Mohr,4 foi outro pioneiro que muito contribuiu para o seu desenvolvimento, realizando em 1971 uma exposição individual na ARC- Museu de Arte Moderna5 da cidade de Paris, que iria ficar na história como a primeira mostra de arte gerada num computador. Sendo considerado um destacado artista neste género de arte, diz-se, sublinhando o seu trabalho, que Manfred Mohr ensinou o computador a fazer arte. Ele próprio declarou: “A ideia de criar arte a partir de algoritmos é o ponto central do meu trabalho, onde uma lógica não visual irá criar uma obra visual.


                          Manfred Mohr  |  P-702/D 2000

    
O seu trabalho, resultante da procura de uma arte virtual habitada pela sua imaterialidade foi diversas vezes transferido para suportes físicos através de impressão digital ou produzido manualmente pelos métodos convencionais. Ele é fortemente geométrico, representando quadrados, rectângulos, cubos ou simples traços, chegando até nós em desenhos e pinturas minimalistas preenchidas de uma forte componente cromática

 

As décadas de 1960 . 1970 . 1980 foram tempos de pesquisa e experimentalismo, de erro e descoberta a caminho da afirmação da arte digital, encontrando-se a grande maioria dos artistas ainda alheada dos esforços levados a cabo por esses brilhantes pioneiros. Nos seus estúdios, eles debatiam-se com o conceptual, o minimalismo, a arte povera, o hiper-realismo, e o neo expressionismo, entre outros movimentos. As galerias e os museus obedeciam aos mercados  e a arte digital ainda estava no limbo, merecendo ainda muito pouco acolhimento.










  



4 Manfred Mohr | Celebrating my 50 Years of Artwork and Algorithms 1969 - 2019

http://www.emohr.com/

5 Manfred Mohr - Computer Graphics

"Une Esthétique Programmée"
ARC - Musée d'Art Moderne de la Ville de Paris
11.
May - 6. June 1971

http://www.emohr.com/paris-1971/index.html

 

O alemão, Wolf Lieser,6 um artista habitando a área da fotografia, já aqui citado, foi o grande promotor da arte digital e da sua história, através da sua bibliografia activa com a edição de diversos livros sobre a matéria e da criação, em 1998, do Digital Art Museum (DAM),7 o primeiro museu online. Foi também muito importante o seu papel na divulgação da arte digital e dos seus artistas com a fundação, em 2003, de uma Galeria física, (DAM Gallery), em Berlim e com a realização de simpósios sobre Media Art e Art Market, sublinhando, aqui, o realizado no Lentos Kunstmuseum em Linz, Austria, em 2016.

 


                                                The world of Digital Art  | autor Wolf Lieser | ISBN 9783833157608

 

Entre 2005 e 2012 foi, também, o agente fundador do prémio DDAA (D.Velop Digital Art Award)  em colaboração com a Kunsthalle de Bremen. Wolf Lieser definiu assim esta forma de expressão de criação artística: “Fazem parte da arte digital as obras artísticas que tendo por um lado uma linguagem visual especificamente mediática, revelam, por outro, as metacaraterístcas do meio.”  

Wolf Lieser considera ainda que: A arte digital ganhará maior aceitação no mercado de arte. Basicamente, ela virá a desempenhar um papel importante na arte do século XXI, porque está intimamente relacionada com nosso estilo de vida, como nos comunicamos e como organizamos as nossas vidas. Da mesma forma que a TV transformou dramaticamente o século XX, a arte digital definitivamente influenciará o século XXI.8  
Wolf Lieser foi, realmente, o arrebatado visionário e o persistente construtor dos alicerces necessários para que  a arte digital se encontre hoje situada num patamar de influência e  numa conjuntura de credibilidade perante o público e os mercados da arte.


6 Wolf Lieser Gallerist, Deutschland

http://netzspannung.org/cat/servlet/CatServlet?cmd=document&subCommand=show&forward=/biography/output/biography.xml&biographyId=260837&lang=de

7 DAM Digital Art Museum

https://dam.org/

8 Media Art e mercato dell’arte: intervista a Wolf Lieser

http://digicult.it/it/news/media-art-art-market-interview-wolf-lieser/

 

É importante sublinhar que a ciência e a tecnologia já, nos fins do século XIX, tinham produzido ferramentas importantes que acabariam por ser usadas para a concepção de linguagens criativas específicas e novas formas de olhar a estética na área da expressão artística. A fotografia e o cinema (sétima arte) são as mais relevantes e centram-se na técnica de criação de imagens fixas, a primeira e imagens em movimento, a segunda.

A primeira fixação de uma imagem numa superfície fotossensível aconteceu 1826, atribuída ao francês Joseph

 

                                           Primeira fotografia por Joseph Nicéphore Niépce em superfície fotossensível | 1816

 

 

Nicéphore Niépce.9 No entanto, foi quando o artista francês Louis Jacques Mandé Daguerre, pintor, cenógrafo e  pesquisador  apresentou, em 1939, o seu daguerreótipo na Academia de Ciências e Belas Artes de Paris que  a câmara fotográfica entrou num rápido processo evolutivo. 

Ao longo dos tempos, com o contributo de diversos cientistas, ela foi-se desenvolvendo chegando aos nossos dias provida de tecnologia digital e pronta para criar obras fotográficas de valor estético e artístico elevado sendo, muitas delas, trabalhadas em programas de software específicos. 

A fotografia, como manifestação de arte digital, ocupa hoje um lugar de relevo nos espaços expositivos de prestígio.       

 

 9 1816-1818 — Niépce’s first Experiments

https://www.dw.com/pt-br/1816-primeira-fotografia/a-515945

Os novos meios de produção artística, primeiro a fotografia (1826, J.N. Niépce) depois o cinema (1895, Auguste e Louis Lumière) e principalmente com o advento da videoarte (1963, Wolf Vostell)11 o computador pessoal (personal computer IBM 1975),12 a internet (1974) e as ferramentas hardware e software, derrubaram as técnicas tradicionais e os métodos ortodoxos e academicistas e ofereceram ao artista novos conhecimentos, novas e inúmeras práticas inventivas e novos e amplos espaços para o exercício criativo, onde a arte digital acabaria, finalmente, por se impor num mundo já saturado de ideias/conceitos (a arte conceptual), de instalações aleatórias e dispensáveis e de inúmeras construções gigantescas, fortuitas e efémeras, tudo fazendo parte da chamada arte do nosso tempo.

 

11 Wikiwand  

https://www.wikiwand.com/pt/Wolf_Vostell

12 The complete history of the IBM PC, part one: The deal of the century

https://arstechnica.com/gadgets/2017/06/ibm-pc-history-part-1/

 

A Media Art que abarca obras de arte criadas através do uso de um componente tecnológico, neste caso o computador, aborda diversas disciplinas, como web art, video art, multimedia art, digital art e outras que, embora existindo uma inter-relação, elas possuem as suas especificidades tanto no seu modus faciendi como na sua componente visual e estética, estando todas situadas no contexto das manifestações  da arte contemporânea.

A arte digital, no momento da sua produção, dimana de um conceito germinado na mente do seu autor com a intenção única da criação de uma obra de arte, usando as ferramentas já mencionadas, sendo trabalhada e exibida em ambiente virtual. Considerando que a arte digital se desenvolve, na sua génese, a partir de uma ideia-imagem produzida na mente do seu criador, tal como acontece nas outras linguagens tradicionais de expressão artística, ela, nada mudando conceptualmente, pouco mudando na sua idealização formal, compositiva e estética, irá modificar-se profundamente na sua componente laborativa, física e exibitiva.

Com efeito, a arte digital caracteriza-se pela sua laboração num espaço computacional com acesso à internet, através das ferramentas disponíveis e qualifica-se pela sua imaterialidade e pela sua exibição em ambientes virtuais ou em rede, como já referenciamos. Consideramos ainda outras características que a diferenciam das convencionais artes plásticas: a sua ubiquidade, efemeridade e falta de unicidade.

 

 

                                                                                 DAPH | digital art | 2013 | Pintomeira

 

 

Academia.adu | Pintomeira

https://independent.academia.edu/ArlindoPintomeira

Pintomeira | artes plásticas e arte digital

https://contact5f39.myportfolio.com/projects

 

Possuindo um longo percurso na criação artística, mais acentuadamente, na área das artes plásticas, sendo a pintura a mais trabalhada, sei concluir que esta, existindo expressa na matéria física, não pode ser comparada com a arte digital devido à falta de materialidade e fisicalidade desta e à sua existência em ambiente virtual

Embora sabendo que, na sua feitura, a   arte digital incorpora ciência, tecnologia e virtualização, sei também que o seu processo criativo, quer na sua abordagem conceptual ou na sua relação com o pathos ou com o emotivo, não depende do suporte, das ferramentas, ou das técnicas utilizadas. No entanto as ideias românticas e as surpresas emocionais dos artistas do século XIX não compartilham este espaço, agora  habitado por computadores, algoritmos, digitalidade, software e racionalidade, tudo isto colocado na mesa da criação artística.


Os meus trabalhos artísticos produzidos no âmbito da arte digital, através das ferramentas próprias de um programa computacional e partilhados em rede, são uma expressão de

 


 
                                                                                 Desencontro DAPH | digital art | 2013 | Pintomeira

 

actividade intelectual tal qual as outras obras por mim criadas nas diversas linguagens das artes plásticas e sendo ambas colocadas no contexto multidimensional e plurifacetado da arte contemporânea.

Ao decidir utilizar as ferramentas tecnológicas ao dispor no meu computador através da computação gráfica, eu passei a habitar um ambiente digital da criação artística, entrando em ruptura com a convencional representação imagética sobre uma estrutura física.

No entanto, a sua génese, a sua concepção, a ideia primeira de uma obra de arte digital transporta consigo o mesmo ADN que a concepção de uma obra de arte produzida com estruturas e ferramentas físicas. Ambas pariram do mesmo útero mental do seu autor, fecundadas pela sua capacidade imagética e sensibilidade estética. 

 

A arte digital é global, navega sem algemas e não traz na coleira os rótulos e os clichés da arte clássica, moderna ou contemporânea, não é domada pelo poder hegemónico dos mercados da arte e não se deixa impressionar pelo discurso nada dizente de alguns críticos e curadores.

A arte digital, descoberta acidentalmente pelo cientista, pelo matemático, e abraçada com entusiasmo por alguns artistas pioneiros a partir da década de 1960, atingiu já a sua assumpção plena no mundo da arte contemporânea.

A semente lançada pelo cientista em terreno computacional, no início da década de 1960,  germinou, cresceu e fez-se árvore com ramificações diferenciadas. Desde muito cedo, o artista decidiu colher os seus frutos e com eles produzir manifestações artísticas que fazem hoje parte da New Media Art. Esta comporta diferentes  formas de  arte digital que acabaram por se impor numa coabitação híbrida onde se encontram  abrigadas num contexto virtual ou mesmo físico, a  pintura, instalações interactivas, vídeoarte e outras.

A arte digital atravessou um mundo de rápidas transformações tecnológicas e, adaptando-se e  tirando proveito delas, hoje, confirmando a visão de Wolf Lieser, ela tem o seu público, impôs-se no mundo das galerias e museus de prestígio e alcançou os mercados da arte.

Este texto não segue o novo acordo ortográfico

 

Pintomeira 2020 

Artista Plástico | Ensaísta

pintomeiragallery.com 

 

Ensaio  publicado em https://independent.academia.edu/ArlindoPintomeira


Datas importantes na evolução da arte digital

1960 . Surgimento do termo Computação Gráfica

1963 . Primeira obra de arte gerada por um computador | “Colibri” de          Charles Csuri | computer-animated film.

1965 . Primeira Exposição de arte digital “Computerfrafik” de Geor Nees em Stuttgart  https://www.heikewerner.com/nees_en.html

1968 . Cybernetic Serendipty | Exposição: computadores e arte no Instituto de Arte Contemporâneo em Londres, UK

https://monoskop.org/Cybernetic_Serendipity

1971 . 1ª Exposição individual de Arte Digital de Manfred Mohr no NAM de Paris, França

http://lounge.obviousmag.org/zoom_nas_visceras/2015/07/a-estetica-programada-de-manfred-mohr.html por João da Rocha em Obvious

1979 . 1ª Conferência sobre arte e electrónica por Manfred Mohr, em Linz, Austria

1988 . Computador e arte digital | Exposição na Galeria Cleveland, Middlesborough, UK.

1994 . 1ª edição do Festival de Arte Electrónica, Países Baixos

1995 . O artista esloveno anuncia o termo Net Art

1998 . Criação do Digital Art Museum | Virtual Museum, por Wolfgang Lieser, Berlim, Alemanha

2001 . O termo Software Art surge no Festival Transmediale, Berlim, Alemanha

2003 . Simpósio sobre arte digital e cultura, MOMA, New York, USA

2005 . Criação do prémio ARTE DIGITAL (DDAA), Berlim, Alemanha