Em Lisboa, Pintomeira adoptou o Surrealismo, em 1970, certamente influenciado
por alguns artistas deste movimento, com quem conviveu. Produz alguns trabalhos na área do surrealismo, cujo manifesto tinha sido apresentado em
Paris, já em 1924, pela mão de André Breton, onde o definiu como: “um automatismo psíquico puro, através do
qual se propõe expressar, seja verbalmente, seja por escrito ou por qualquer
outra maneira, o funcionamento real do pensamento, na ausência de todo o
controle exercido pela razão e sem alguma preocupação estética ou moral.” Baseado
na recusa de todas as elaborações lógicas do espírito e nos valores do sonho e
do irracional, o surrealismo, acabando por abranger, também, o dadaísmo,
edificou um enorme “império” de expressão artística e literária. Em
Portugal, como movimento, ele só viria a surgir, tardiamente, em 1947, tendo
como seus mais destacados fundadores, Cândido da Costa Pinto, António Pedro,
DaCosta e Mário Cesariny.
A partir do final de 1972,
encontrando-se já em Amesterdão, Pintomeira produz os seus trabalhos
surrealistas mais assumidos, como a Esfinge,
o Sonâmbulo bailarino alado ou a Discrição. Entre 1972 e 1978 ele
ignorou
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A Discrição |
outras correntes vanguardistas que fervilhavam em Amesterdão e,
influenciado pelo belga René Magritte, continuou a deambular pelo surrealismo.
Esta corrente de expressão estética, nunca tendo existido, como movimento, na
Holanda, não criou, como consequência disso, uma cultura marcadamente
surrealista nesse país. Pintomeira não demorou muito tempo a constatá-lo. A sua
primeira exposição na capital holandesa, realizada na Gallerie Jolijst em 1974,
embora tendo provocado uma evidente curiosidade, não acolheu qualquer manifestação
de grande entusiasmo. O oposto aconteceu, em 1978, aquando da realização da sua
exposição na galeria Entremonde, em Paris, o lugar sagrado do surrealismo.
Para a produção da sua obra
surrealista, o artista utilizou diversos temas como fontes de inspiração, no
entanto, dois temas aparecem-nos de uma maneira recorrente: a mitologia
greco-romana, em A Leda e o cisne, Apolo e Daphne, Io e a nuvem, Júpiter e Antíope e a bíblia em Regresso do
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Leda e o Cisne |
filho pródigo, A Pietá, e a Crucificação. É conhecido que, para além das influências de René
Magritte, ele, tendo convivido, embora fugazmente, no início da década de
setenta com o pintor holandês do mágico realismo Carel Willink, e conhecendo
bem o seu trabalho, tenha também dele absorvido algumas influencias. O mesmo
poderá ter acontecido com o, também holandês e também mágico realista, Pyke
Koch, que Pintomeira muito admirava.
Há artistas que, uma vez ligados a
um estilo na sua expressão criativa, muito dificilmente o abandonam, durante
toda a sua carreira. Os motivos tanto podem estar relacionados com uma questão
de coerência como com uma questão de conforto. Se olharmos para o conjunto da
obra de Pintomeira, notamos imediatamente o oposto, concluindo que ele mudou,
com frequência, não só o tema, mas também a maneira como o expressava,
permanecendo sempre, em todas essas transmutações, fiel à sua assinatura, e à
sua linha.
Assim, após a sua participação no
Salon 1978 realizado pela Societé des Artistes Français, no Grand Palais de
Paris, com o nome de Metamorphoses, homenageando o pintor surrealista belga
René Magritte, decidiu terminar a sua fase surrealista. Não olhou para trás,
não se transformou, mas, mudando de carruagem, partiu para outras descobertas.
Durante os primeiros anos da década de oitenta, o tempo da euforia e da
excitação comercial e especulativa, quando tudo parecia ser arte e tudo se
comprava e se vendia, Pintomeira, não querendo entrar naquele carrossel,
encetou, calmamente, diversos experimentalismos, especialmente em trabalhos
sobre papel: desenhos a aguada, desenho com pó de grafite, serigrafia monotípia
sobre papel de fotografia, feitura de posters de cinema, ilustração, etc. Há
hoje poucas imagens de todo este vasto trabalho que se encontra, na sua quase
totalidade, presente em diversas colecções privadas. Esta fase nunca constituiu
um interregno ou um tempo de espera, mas, muito concretamente, preencheu e
corporizou uma passagem de um estilo | tema para o
seguinte. Algumas imagens existentes foram escolhidas para ilustrar esta
passagem.
A Paisagem nunca foi um tema que o entusiasmou ou despertou a sua
atenção. Nunca se deixou arrebatar com as obras dos mestres do realismo ou do
naturalismo cuja intenção era “imitar” a natureza, pintando cenas da vida real
ou recriando paisagens naturais. Nem mesmo os impressionistas, que ele muito
admirava, o seduziram para a paisagem. No entanto, e apesar de todo esse
alheamento por essa expressão artística, Pintomeira, com alguma surpresa, não
deixou de a trabalhar, nos fins dos anos oitenta. São paisagens produzidas a
partir de fotografias que ele tirou no sul de Portugal,
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Alentejo |
numa das visitas que,
então fez, ao seu país. Serão cerca de três dezenas e, todas elas fazem hoje
parte de colecções privadas e institucionais. Elas representam, quase na sua
totalidade, paisagens alentejanas, nunca tendo sido sua preocupação, muito longe
disso, querer reproduzir a natureza. Notamos que o artista dedicou mais atenção
ao espaço, à forma e à expressão cromática, não se notando nenhum dos elementos
típicos e quase sempre presentes neste género de trabalhos artísticos: as
árvores, os animais, e as pessoas. Somente, uma ou outra mostra-nos, de uma
maneira muito escondida, a presença de algumas casas ou um tronco de árvore,
usado ali como uma figura geométrica, a linha vertical. Para além da já
referida expressão cromática, houve, na sua construção, uma ponderação assumida
e uma atenção muito forte dada ao espaço ou espaços e à
 |
Alentejo |
profundidade. A sua
composição, parecendo ser concebida a partir de uma ideia geométrica, ela não
mostra nenhum respeito pela perspectiva ou por outras regras académicas
vigentes.
O crítico de arte Donald Meyer,
escreveu em 1995, em Amesterdão, no prefácio do livro Contornos: “Pintomeira é um
artista sempre fiel à sua assinatura, não
querendo, eternamente, repetir-se.” Também o historiador e escritor Alberto
A. Abreu o refere no seu texto “Da
manipulação dos objectos à sua desmaterialização” onde escreve em 2006: “...Artista inquieto (e irrequieto), Pintomeira foi sempre
tentando várias experiências, logo desde a sua fase mais rica que foi a
"surrealista”. Uma observação semelhante, mas mais
recente, em 2016, é feita pelo catedrático de historia contemporânea, Ramón
Villares, no catálogo Cutouts: “Na
longa trajectória artística do pintor encontram-se várias etapas,
conceptualmente diversas e audazes no plano técnico. Um dos seus traços
essenciais é, justamente, a sua capacidade para experimentar, para encontrar
novas formas e novas linguagens.” Finalmente, Michael Amy, Professor de História de Arte no Rochester
Institute of Technology, USA, escreveu: “Após
50 anos de carreira, Pintomeira continua a deliciar-nos, tirando novos truques
daquele seu baú cheio das suas próprias idiossincrasias acerca da arte e da
vida. Pintomeira pertence a uma distinta linha de artistas camaleões, que
continuam a inovar em função dos casos que permanecem em movimentação.”
Quando começamos a analisar a sua obra
elaborada durante a década de noventa (1992-1999) pudemos confirmar, inteiramente,
aquilo que os distintos críticos acima mencionaram. Pintomeira, movido por uma
ânsia e uma assumida determinação para inovar, debruçou-se sobre a utilidade e a
dinâmica do contorno. Perceptível em Sandro Botticelli, abandonado no
impressionismo, e assumido em Picasso, Pintomeira deu-lhe autonomia,
libertando-o da sua mera função de risco de fronteira ou de muleta do desenho e
converteu-o numa presença dominante e dominadora. Este novo tema a que chama Contornos reafirma o seu distanciamento
das correntes em voga, enfeudadas ao sistema que, determinado em demolir o que
restava da arte moderna, apelidando-a de contemporânea, ficou com pouco mais do
que um amontoado de pedras ou ready mades espalhados pelos chãos dos museus. Pintomeira,
um não alinhado, não prestava vassalagem ao mercado, menosprezava a mercadoria,
e caminhava pelas salas do Stedelijk Museum de Amesterdão, próximo do seu
atelier, em passo apressado e indiferente às peças instaladas, às pedras
colocadas no chão e aos neon’s acesos, procurando um Karel Appel, um David
Hockney ou um Eric Fischl. No seu atelier, em Amesterdão, próximo dos museus,
ele trabalhava o seu novo tema de uma maneira enérgica e acalorada. A
manipulação do contorno na sua pintura figurativa e os resultados obtidos
faziam-no acreditar que aquele caminho estava a conduzi-lo a uma nova expressão
estética e formal à volta da figura. Os contornos tornaram-se mais largos,
multiplicaram-se e
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Canção Cor de Rosa |
alongaram-se, ultrapassando a fronteira do seu propósito convencional.
Eles passaram a construir um espaço, agora notório e impositivo e que passou a constituir,
de uma maneira indiscutível, a presença de uma nova área, ao lado da figura ou
dos objectos adjacentes. Aquele enredado e complexo conjunto de espessas linhas
que se libertaram da sua função eternamente secundarizada e escravizada, parece
ter sido lá colocado de uma maneira arbitrária ou gestual. Nada de mais
enganador. Esse conjunto de contornos
que percorre toda a superfície onda a obra acontece, obedece a uma observação e
construção racional e objectiva. Essas densas linhas são, muitas vezes,
colocadas, contornando a figura, sendo seguidamente retiradas e de novo
posicionadas de forma a alcançar a harmonia e o equilíbrio pretendidos. O
artista teve aqui também outra preocupação: o equilíbrio cromático. Ele é
conseguido
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Madona |
na maioria dos casos, apoiado na escolha de cores primárias e
trazidas para a tela em combinações complementares. Essa preocupação pode ser
observada nas obras: Madona, Canção cor de rosa e Mulher recostada e contornada.
Este tema Contornos, que consideramos uma
experiência inovadora na sua concepção artística, abrange cerca de oitenta
trabalhos em diversas técnicas e sobre diversos suportes, fazendo, quase todo ele,
hoje parte de colecções públicas e privadas.
O século XX, preenchido pelos diversos
movimentos, correntes, manifestos, grupos, e vanguardas que muito enriqueceram
a Arte Moderna, estava a chegar ao fim. Pintomeira terminava também a sua
permanência de quase trinta anos em Amesterdão e regressava a Portugal.
Em 1999, no seu novo atelier, no norte do
país, iria nascer um novo tema: Nova
Linha. Alberto Abreu refere, de novo no seu ensaio “Da
manipulação dos objectos à sua desmaterialização” deste modo, este tema: “A desmaterialização
dos objectos foi o caminho seguido por Pintomeira numa nova linha onde o
contorno acabou depois por se reduzir a um filete. As imagens dos objectos
aparecem estilizadas quando não reduzidas a silhuetas sem cor nem respeito
pelos outros objectos do quadro, e deste composto de texturas que Ihe conferem
ritmo, irrealidade, estatuto de formas puras.”
O artista conhecia bem os trabalhos do grupo CoBrA e a
sua linguagem pictórica. Os membros mais destacados deste grupo foram Karel
Appel, Asger John, Corneille, Lucebert e Pierre Alechinsky. A capital
holandesa, onde Pintomeira viveu durante muitos anos, e onde conheceu
Corneille, foi o centro artístico e intelectual desse movimento fundado em 1948
e reunindo artista de Copenhaga, de Bruxelas e de Amesterdão, tendo o acrónimo
CoBrA nascido da aglutinação das iniciais dessas cidades. O seu novo tema Nova
Linha apresenta abordagens estéticas e formais muito próximas de alguns trabalhos
desse grupo, que revelou uma linguagem de experimentação onde imperava a
liberdade, o simples e o espontâneo, mostrando manifestações da arte primitiva
e algumas influências do surrealismo. Na Nova Linha, Pintomeira, rompendo com a
concepção estética dos Contornos, iniciou uma nova obra figurativa, agora mais depurada
e fortemente estilizada. Para além da figura, o artista recorre
 |
Pintura XCIV |
muitas vezes à
representação de aves, peixes e outros animais, assim como às formas circulares
e ovais interpretando sóis ou luas, e outras quadradas, rectangulares ou
simplesmente linhas utilizadas para a construção de um equilíbrio formal. Aqui,
a concepção e elaboração da obra é instintiva, directa e muito pouco pensada,
não tendo o peso da ponderação racional ou a meticulosidade e a minúcia usada
nos Contornos. Mesmo assim, a obra não deixa de ser demoradamente trabalhada,
adquirindo texturas espessas, sobreposição de tons, raspagem e areamento.
Algumas figuras apresentam-se ainda contornadas, Pintura LXII e Pintura XXXVI,
outras mostram-nos desenhos sobre um fundo abstracionado em Pintura XXVI e Pintura XCI
 |
Pintura LXII |
e ainda outras incluem colagem como em Pintura XCIV e Pintura XXVIII. A Nova Linha constitui um conjunto de cerca de uma
centena de trabalhos elaborados em diversas técnicas e sobre diversos suportes:
acrílico, técnica mista, desenho a grafite e feltro, colagem, cerâmica etc.
Embora este tema tenha sido produzido, de modo contínuo, entre 1999 e 2007, o
artista dedica-se, ainda hoje, se bem que esporadicamente, à feitura de outros
Novas Linhas, sendo agora, na sua grande maioria, acrílicos sobre papel.
A partir de 2003, Pintomeira, enquanto trabalhava na
Nova Linha, iniciou um novo tema que intitulou de Faces. Esse trabalho, realizado em simultâneo, foi possível porque
a figuração se apresentava muito semelhante e, ao contrário da Nova Linha,
maioritariamente obras de grandes dimensões sobre tela, aquele era produzido,
nesses primeiros anos, em acrílicos sobre papel. Na realidade, estes primeiros
trabalhos, acrílicos
 |
Faces |
sobre papel, confundem-se facilmente com os do tema
anterior e, para poder diferencia-los será necessário fazer uma observação atenta
e concentrada em relação aos detalhes ornamentais que ladeiam a face. Poderá
dizer-se que o artista, enquanto se empenhava em construir a nova linguagem Nova
Linha iniciada em 1999, ensaiava, paralelamente e com pouco esforço, uma outra,
muito próxima e que viria a distanciar-se, definitivamente, da Nova Linha, anos
mais tarde, em 2010.
Entretanto, no ano de 2009, Pintomeira encontra-se já
no seu novo atelier de pintura e estúdio de fotografia, em Braga para onde se
tinha mudado em 2007. Nesse ano, ele vai trazer para o seu espaço criativo um
género de “neo pop art” influenciado por alguns trabalhos de David Hockney e
outros de Tom Wesselmann. O propósito é aliciante, mas também desafiador. O
novo tema foi baptizado de Interiores.
O sociólogo e escritor Moisés de Lemos Martins, professor da Universidade do
Minho, escreveu no catálogo que acompanhou a exposição “Interiores . Exteriores”
realizada na Galeria da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova
de Lisboa: “A composição
de ‘Interiores' é minimalista. As cores são fortes, contrastantes, e
tendencialmente primárias (branco e preto como cores neutras; além destas,
vermelho, azul e, em vez do amarelo primário, o ocre). Os espaços são sempre
apresentados em apontamentos simplificados, sem grande investimento no jogo de
sombras e com formas quase geométricas, onde apenas a figura humana foge ao
traço recto dos objectos. Pintomeira traça as principais componentes das peças
e introduz pequenas parcelas de desenho, umas vezes pontilhado, outras às
riscas, e ainda em linha recta ou circular, de modo a definir melhor um detalhe
de janela, cortina, candeeiro, tapeçaria, carpete, ou mesmo de figura humana. A
sua capacidade de síntese sobressai, por outro lado, nas vistas exteriores, que
são aliás raras nesta fase do artista.” Este conjunto de dezasseis obras em acrílico e
técnica mista sobre tela e de grandes dimensões, mostram-nos momentos de
intimidade passados numa sala de estar, onde se encontram personagens, ora
sozinhas ora acompanhadas, nada comunicativas, solitárias, parecendo
enclausuradas em espaços sem janelas. Outras há, onde a ligação com o exterior
parece existir através da construção de janelas ou portas mas,
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Interiores 5 |
apesar de ser
notado um azul celeste, tudo parece opaco, não se presenciando qualquer
existência de luz natural, havendo a percepção de um ambiente de retiro ou
reclusão, Interiores 5 e Interiores 11.
O conceito da composição e da forma sugerem encenações teatralizadas onde as
personagens se afiguram mudas e imóveis, apresentando-se, umas sentadas em
sofás ou cadeiras, e outras de pé. A sala de estar, aqui, parecendo simular um
palco, está preenchida por cadeiras, sofás candeeiros,
 |
Interiores 11 |
carpetes, vasos, etc. Outros
elementos, recorrentemente utilizados pelo artista para o equilíbrio da
composição formal, preenchem os espaços da obra: linhas, traços largos e
densos, tracejados lineares ou outras formas geométricas.
O espaço
onde tudo acontece é uma sala de estar de qualquer habitação. E o que acontece?
Parece nada acontecer, embora paire no ar uma certa expectativa de que algo
poderá vir a suceder. A personagem feminina, de desenho exacto, sempre vestida
de preto, estática e espectante, assemelha-se a um manequim de montra, a um
modelo de passerelle. Toda a encenação remete-nos, também, para os outdoors
publicitários urbanos, podendo concluir-se que o artista, tendo ligações ao
design gráfico, por ele se deixou influenciar. A isso se refere Moisés de Lemos
Martins, no catálogo acima mencionado: “Nesta fase
estética, marcada pela Pop Art e pelo Design Gráfico, Pintomeira descreve, de
um modo geral, lugares enclausurados em si mesmos, sem linhas de fuga nem
horizonte. Este procedimento obedece aos princípios da Arte Minimalista. Ao
privilegiar o espaço de exposição, o artista cria uma obra que se situa entre a
pintura, a escultura e a arquitectura. Este espaço, simultaneamente contínuo e
descontínuo, assenta na autonomia do mundo interior e não parece conceber
qualquer exterior.” Este tema Interiores será, dois anos mais tarde,
complementado com o tema Exteriores. Sobre ele, iremos debruçar-nos, mais à
frente, para uma análise detalhada.
E será durante o ano de 2010, que Pintomeira apresenta,
de maneira manifesta, essa nova expressão artística que iniciou em 2003, de uma
maneira experimental, mas que é agora assente em novos princípios estéticos e
conceptuais, assumindo que este Faces se
diferenciava da Nova Linha, uma vez
que toda a atenção é colocada somente nas faces femininas, de densos contornos
e de grande dimensão, estando excluídas outras representações.
No catálogo da exposição de Faces e Outras Faces no Museu Pio XII em Braga, em 2010, o seu
director, José Leite Abreu, escreve: “No itinerário de muitos sobressai o seguidismo – que
não a fertilidade; sobressai a falta de aventura, a confrangedora ausência de
criatividade, a segurança imobilista de caminhos que não ousam, o tédio de
estradas nunca abertas à novidade. Outros há, porém, que aceitam inovar; que
rompem com escolas e esquemas tradicionais; que pintam a realidade com cores
novas, arrojadas, inconformadas; que ruminam a realidade até ao ponto de a
transformarem numa realidade nova, numa auto-realidade. É quanto de essencial
se me oferece dizer sobre o pintor Pintomeira.”
Aparentemente,
estes trabalhos parecem ter nascido de uma simples e descomplicada elaboração.
Mas, só aparentemente. Na verdade, a sua construção é morosa e muito trabalhada,
podendo dividir-se em quatro fases
 |
Faces |
distintas. O artista começa por estruturar
um fundo, colocando diversas camadas e usando recorrentemente tons de cinza.
Sobre esse fundo ele agrupa diversos espaços, uns geométricos outros
aleatórios, de um cromatismo equilibrado, utilizando quase sempre duas cores,
umas vezes complementares, outras vezes cores vizinhas ou pertencentes à mesma
família. Já aplicados no seu tema Nova Linha, aparecem agora, os pontos, os
traços densos, as linhas “paralelamente” irregulares e, pela primeira vez ele
introduz o tracejado, colocado em linhas rectas ou formas geométricas. Posteriormente,
existe o aumento do fundo cinza através de uma subtração ou destruição dos espaços
cromáticos antes pintados. Nesta fase de construção da expressão estética, ele
parece estar ocupado na elaboração de uma pintura abstrata. Na realidade, um
abstracionista poderia, uma vez chegado a esta fase, considerar a obra como
terminada e pronta para ser exposta. Mas, Pintomeira sempre foi um figurativo e
vai continuar a sê-lo. E
assim, o artista chegou ao momento de encetar a
abordagem final, a figuração, a representação. Tudo se resume a um desenho
simples de uma face feminina, às vezes, andrógena, executada em pinceladas
enérgicas
 |
Faces |
trazidas em densos contornos pretos. Ela está poderosamente presente,
ocupando grande parte da superfície do quadro. A expressão é contemplativa, de
indulgência, de compaixão, levando-nos a fazer emergir da memória as madonas
renascentistas.
Durante o
ano de 2010, ele volta a surpreender o público com uma exposição de dez obras
que, embora estando incluídas no mesmo tema Faces, o artista, considerando que
elas apresentavam uma diferenciação suficiente na sua concepção formal,
construtiva e técnica, decidiu desligá-las das anteriores e denominá-las de Outras Faces. Era a sua preocupação
insistente de nunca se repetir. Num texto escrito pelo crítico de arte Egídio
Álvaro pode ler-se: “O trabalho de
Pintomeira caracteriza-se igualmente por uma procura permanente de um
equilíbrio nas formas. Ele está sempre à procura de uma expressão plástica
nova.” Estes dez novos trabalhos representam fotografias de rostos
recolhidos dos media ou de uma
 |
Outras Faces |
pesquisa na internet. Passando por uma impressão
digital de grande formato sobre tela, esta é posteriormente cortada e colada
sobre a tela principal, havendo depois uma intervenção, já mais convencional,
através da pintura acrílica e a introdução dos densos traços, linhas, formas
geométricas e o tracejado. A fotografia, o design, a publicidade e a pop art
estão, aqui, manifestamente presentes.
Como
mencionamos acima, durante os anos de 2011 e 2012, Pintomeira vai trazer para o
seu atelier os Exteriores. Um
conjunto de dezanove trabalhos, sendo a maioria composta por acrílicos de
grandes dimensões, caracterizados por momentos de exteriores urbanos, captados
fotograficamente, mas, trazidos para a tela numa concepção estética e formal de
imaginação livre, misturando as personagens com as sinaléticas do tráfico
rodoviário, o grafismo dos números e das palavras e com os seus, já habituais,
traços, tracejados, linhas, círculos e quadrículas. No catálogo da exposição “Interiores
. Exteriores” realizada em 2011 na Galeria da Faculdade de Ciências e
Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, a mesma já acima referida, José Luís
Ferreira, sociólogo, escritor e investigador de arte, escreve: “Pintomeira compõe, constrói e elabora esse
universo, segundo um plano de ordenamento subjectivo, um projecto aparentemente
simplista em que a figuração sintética, minimalista e plana (com as cores
primárias das artes gráficas, do design, da banda desenhada), se estilizam,
como simbiotas paralisados, criados a partir de valores de precisão (quase)
fotográfica, alto-contrastantes e equalizados pelo contorno das formas, da
silhueta, do caricatural figurinista, do manequim, do modelo, da nature morte…
fabricados pelo caleidoscópio
 |
Exteriores 14 |
elemental da sua paleta.” Exteriores reportam
ou aludem a momentos do quotidiano urbano, mostrando personagens apressadas,
atravessando passadeiras de peões, umas em trabalho e outras simplesmente em
passeio, Exteriores 14 e Exteriores 2.
É uma construção plana, sem qualquer perspectiva, havendo em alguns casos, a
percepção de profundidade, sugerida pela disposição do traçado das passadeiras.
A cor cinza, presente em todos estes trabalhos, remete-nos para o asfalto onde
tudo se vai desenrolando, orientado ou desorientado por toda a mistura
arbitrária da sinalética de proibição, obrigação ou simplesmente indicativa. Sendo,
aqui, notório o poder de síntese do autor, a obra mostra-nos uma construção
minimalista, reduzindo o ambiente vivido nas ruas urbanas a uma ou duas
personagens que atravessam passadeiras de peões, não trazendo para o espaço da
pintura os veículos motorizados, os edifícios, as estruturas ou os objectos da
decoração urbana, encontrando-se, no entanto, todos eles,
 |
Exteriores 2 |
subentendidos. Foi
assim que ele concebeu toda a expressão estética e formal para esta sua obra,
querendo que esta complementasse a outra, Interiores, colocando de novo, na
tela, uma imagética próxima do design gráfico ou do outdoor publicitário. É,
mais uma vez, José Luís Ferreira que o refere no catálogo já mencionado: “Não é ocasional nem negligente, não é
mimética nem seguidista, a pintura que aqui se vê construída e concluída, de
forma muito elaborada, não obstante o autor persiga a simplicidade, buscando a
síntese, numa figuração que tanto se aproxima da escala mural de uma
monumentalidade que, só entre nós – e, hoje! – se estranha, ainda, não ter sido
mais procurada, para integração na arquitectura… exterior e urbana que, ela
própria subentende, pressupõe e revela, como do habitat humano na
contemporaneidade portuguesa, plasmado numa forma original de expressão urbana,
onde se estampam belos registos murais que documentam singularidades e
estereótipos marcantes e peculiares do quotidiano actual.” Toda esta
encenação do quotidiano urbano apresenta-se, na sua construção estética, formal
e compositiva, como momentos fotográficos cliché, sem qualquer vislumbre de
emoção, sem qualquer estado de alma, dando a entender que as pessoas atravessam
as passadeiras de uma maneira fugidia, sem nenhuma relação com o outro,
querendo chegar a um destino que o espectador não consegue descortinar. Para o autor,
a produção deste tema, tendo nascido de um trabalho muito elaborado, aturado, construído e desconstruído para,
finalmente, ser assinado e apresentado
ao público, ela constituiu um compromisso de complementaridade, assumido desde
a conclusão de Interiores e que tinha de ser cumprido, a breve trecho.
Após a
conclusão do tema Exteriores, Pintomeira passou os próximos dois anos, no seu
estúdio, ocupado com outra linguagem estética: a Fotografia. Ela, embora faça
parte integrante deste livro, não vai ser analisada neste espaço, ficando essa
apreciação para outros críticos e remetida para outras páginas.
O ano de
2015 trouxe Pintomeira de regresso ao seu atelier de pintura. Tendo, uma obra
sua pintada sobre tela, acidentalmente, sido danificada, ele decidiu, após a
separação da tela do seu suporte, a grade de madeira, e após a ter recortado com
uma tesoura, em várias partes, fazer uma colagem dessas parcelas. O resultado
surpreendeu-o positivamente e acabou por fazer o lançamento do seu próximo
tema. É indubitável que a associação com o trabalho do pintor francês Henri
Matisse que, na última década da sua vida, entre 1941 e 1952, produziu uma
grande quantidade de trabalhos originados numa técnica do corta e cola, existiu
e transformou-se mais num estímulo do que numa influência. Esse vasto trabalho
realizado pelo artista francês foi denominado de cut outs e consistia na
utilização de dois simples materiais, papel e guache. A ferramenta era um
simples par de tesouras com as quais Matisse recortava os papeis pintados,
transformando-os, através do corte, em animais, plantas, figuras e outras
formas, sendo, posteriormente, todos esses recortes colados num suporte
consistente para que pudesse ser transportado e integrar exposições.
Pintomeira
tinha encontrado um nome para o seu novo tema. Aglutinou as palavras do verbo
(to) cut out e substantivou a agregação como Cutouts. Assim passou a
ser chamada a obra que ele iniciou em 2015 e que resultou, até ao momento, na
produção de vinte trabalhos. O autor utilizou uma técnica distinta, mais
abrangente e mais elaborada do que a de Henri
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Cutouts 12 |
Matisse. Ele pintou com acrílicos
ou desenhou com lápis grafite as suas formas, na sua maioria faces, sobre uma
tela não montada, usou seguidamente a tesoura para as recortar de uma maneira
aleatória e, após ter ordenado, no chão do seu atelier, os recortes até atingir
uma composição que lhe agradasse, essas parcelas foram coladas sobre a tela
principal, agora montada em grade de madeira. Numa fase seguinte, as formas
coladas e os espaços entre elas iriam ser trabalhados com tinta acrílica usando
dripings, camadas, texturas, traços e linhas, conseguindo uma expressão
estética que denunciava degradação, destruição, envelhecimento, surgindo na
nossa memória a visão de pinturas murais, de frescos antigos, já em ruína, estragados
pelo tempo e pela negligência do homem, restando da pintura original, somente
alguns fragmentos, Cutouts 12 e Cutouts 16.
No catálogo
editado para acompanhar as várias mostras dos Cutouts, o
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Cutouts 16 |
catedrático de
história contemporânea da Universidade de Santiago de Compostela e também
Presidente do Conselho da Cultura Galega, escreve: “Pintomeira possui perícia
técnica, formação intelectual, conhecimento dos rumos nacionais e
internacionais da pintura e, além disso, uma forte vontade experimental. Assim,
chega a esta nova proposta na sua biografia, que é a série Cut-outs, inspirada
na obra que o pintor Henri Matisse desenvolveu nos derradeiros anos da sua vida
e que, em datas recentes, foi exposta em toda a sua amplitude nos prestigiados
museus MOMA e na Tate Modern. Para Matisse, aquele projecto tinha sido uma
solução crepuscular; para Pintomeira é, pelo contrário, uma nova experiência na
maturidade da sua trajectória artística. Depois de indagar no surreal ou de
conciliar a arte figurativa com a necessidade da identidade, que marcou boa
parte da sua obra, agora trata de entender o mundo actual, no que o
fragmentário, o reutilizado, mas também os recortes fazem parte do discurso da
sociedade presente, dos seus desafios e dos seus medos.”
Este é o seu tema mais recente que continua a ser trabalhado no
seu atelier. Tratando-se de um autor prolífico, experimentalista e inovador, Pintomeira
irá, muito provavelmente, surpreender-nos nos próximos tempos, trazendo-nos uma
nova expressão estética ou uma nova linguagem artística.
Leonardo
Moniz
artista
plástico
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