11.10.14

Contornos


Contornos

Donald Meyer
Crítico de arte

No princípio da década de setenta, encontrando-se, já, em Amesterdão na Holanda, Pintomeira enviava a alguns dos seus amigos, missivas que ficaram conhecidas como Cartas Condenadas. Numa dessas cartas, escrevia:
...Eis-me, expectante perante a alva tela-linho! Textura morta, sedenta de convulsões viventes. Eis-me, extasiado, de torneira profundamente aberta, jorrando beleza curvilínea e revolta em espiral, para o espaço da criação, em pinceladas de exaltação oval.
...Ah! sarcasmo gigante, ironia, como comboio veloz, esbelto, próximo do descarrilamento. Descoberta, como barco à deriva, atracando em porto desconhecido.  Rebuscarei e picarei a pedra até à descoberta da nova forma. Romperei as botas que, para isso, forem necessárias e dançarei, depois a louca Primavera, sobre a mesa da delícia, esperando o sol do Verão quente. Nada de grande e sublime foi criado sem exaltação e paixão! Nunca puritano, celebro sempre a nova ideia. Levanto a minha taça e bebo ao meu Renascimento contínuo. Assim, suprimo a névoa e ilumino o espaço que existe entre mim e o cândido linho, para sentir o labor do pincel, o aroma do pigmento, no êxtase da cor e da forma. Depois, nada existe que não tenha jorrado das minhas entranhas e passado o salão azul do meu inconsciente.”
Nessa altura, Pintomeira encontrava-se no fim do seu período surrealista, iniciado há alguns anos atrás, em Lisboa. Era evidente a sua inquietação e fogosidade na procura de um novo estilo. Na Europa e Estados Unidos da América, fervilhavam, então, as mais diversas tendências e movimentos. Da Pop Art e Foto Realismo ao Novo Realismo, Joseph Beuys e Nova Figuração. A arte moderna parecia ter atingido o cume da sua vitalidade e expansão e dava já sinais de saturação. A recém-nascida art post moderna ou contemporânea amamentava-se de revivalismos para poder crescer, vindo, mais tarde, a explodir em instalações, vídeo e escultura kitsh.
Pintomeira distanciava-se dos grupos estabelecidos e partia para uma busca desligada, não alinhada. No catálogo de uma exposição realizada, em fins dos anos setenta, em Paris Galerie Entremonde (assinando ainda Pintorosha), podia ler-se:
...O espaço, a forma a cor e a luz, encontram-se maneiristicamente situadas no mundo surreal. Maneirismo e surrealismo olham-se no mesmo espelho, procurando a beleza convulsiva de Breton. A fantasia é libertina e, a harmonia ritmada da composição suaviza o espaço entre a obra e o espectador.
...o belo e a forma
 ressuscitam, agora, para o nascimento do novo estilo. No salão azul do inconsciente do automatismo psíquico de André Breton, bailam, agora, o inconformismo de Masaccio, a insolência de Miguel Angelo e a inquietação de Pontormo, para celebrarem o festival do encontro fortuito de Lautramont, entre uma máquina de costura e o guarda- chuva, sobre uma mesa de operações.
...insurjo-me contra a expressão mecânico-preguiçosa da arte na minha geração. Passado meio século da revolução surrealista, é tempo de autopsiar a bexiga da arte morta...
...Salvé Minerva, amante minha; toma o meu leito de relva fresca e lança no sémen dos meus sentidos a semente da vegetação neo maneirista. Se a Primavera que me trazes nas mãos, não exacerba e exalta a vontade do meu espírito, acabarei por ser sepultado no Outono, ao som das harpas que imaginei para o renascimento do culto da harmonia e da beleza convulsiva do surreal maneirismo.”
Estas palavras representam o requiem para o seu surrealismo, após ter tentado dar-lhe outro leito para novos e profundos sonhos no comboio dormitório onde a arte viajava velozmente para o ovular anárquico de estilos, para o deserto da imaginação, a caminho da euforia comercial e especulativa da década de oitenta.
Pintomeira apresenta, agora, alguns dos seus trabalhos mais recentes. Como já se podia ler no catálogo que acompanhou a sua última exposição, o artista continuava a mostrar o seu divórcio das tendências dominantes. Seguindo um caminho não alinhado, ele apresenta Contornos. O contorno, elemento que ultrapassa a sua utilidade prática, revelando o seu alargamento, prolongamento e multiplicação, nasce, agora, como espaço próprio, autónomo. A sua influência na elaboração da obra, torna-se preponderante. A sua presença é evidente, está patente. Embora, sempre fiel à figuração, estão presentes, entre estas linhas e traços, elementos característicos da abstração e dos grafitis.
A palavra contorno tem significados, utilizações e qualificações diferenciadas. Nos trabalhos que fazem parte desta sua nova proposta, ele deixa de ser a linha fina do desenho académico e converte-se no largo traço ou mesmo na área que se situa entre a figura, os objectos e mesmo os espaços, deixando de ser a fronteira que separa o seu interior do exterior adjacente. Ele, aqui, perde o purismo e o rigor clássicos, tanto no seu significado como na sua finalidade e subleva-se, exigindo e conseguindo a sua autonomia. Aquela linha magriça que definia o que estava aquém ou para além, surge, nos trabalhos deste autor, como um traço, volumoso e dominador, senhor do seu território, não servindo para definir exteriormente a figura mas, é ele que se transforma num corpo, reclamando a sua própria linha de fronteira para se delimitar e poder ser considerado, ele próprio, um espaço caracterizante no contexto da composição pictural. O contorno adquire o estatuto de forma nesta nova composição estética e vai assenhorear-se, pouco a pouco, de um território que nunca lhe pertenceu.
Após uma nova observação, reparamos que esse contorno, rejeitando a solidão, multiplica-se, geminando-se uma, duas, três vezes, expandindo o seu território, assumindo o seu lugar e a sua relevância na construção estética e formal da obra, como pode ver-se em Contorno 20. Por outro lado, ele não se restringe a ocupar o lugar ao redor da figura ou espaço, mas, demonstrando um dinamismo e um impressionante vigor, ele ramifica-se, estende-se e propaga-se para além desse lugar e chega até à fronteira física da representação.
A escrita pincelar é profundamente pessoal e convida o espectador a percorrer todas essas densas linhas contornantes, dando-lhe a possibilidade de contemplar a figura ou objecto, no conforto da periferia anfiteátrica, e fazer parte da representação. O rigor, quase matemático, em todas essas linhas e contornos, acentua uma preocupação na busca de uma harmonia que suavize e tranquilize uma observação mais dramática da memória. No entanto, esse rigor, na procura do equilíbrio, não significa austeridade ou aprisionamento do lírico. Ele é, aqui, uma euforia feérica ornamentando um blues que teima em tornar-se num rosa happy end. Essa exuberância linear, esses espessos traços que se cruzam e se interligam, conduzindo a novas áreas, oferecem um ambiente de dinamismo e diversão a uma representação estática, ou inspiram movimento e ritmo a uma figuração depurada.
Pode, com certeza, pensar-se que esse confuso emaranhado de linhas foi traçado arbitrariamente, obedecendo a um automatismo gestual. Nada de tão enganador. Elas são antes fruto de uma construção racional. Eliminadas umas e de novo repensadas outras, elas são, em alguns casos, medidas ao milímetro ou pesadas ao grama, fazendo lembrar o trabalho minucioso e racional de Mondrian na elaboração das suas composições.
Muitas dessas densas linhas são o prolongamento dos repetidos contornos para fora da sua área prática; outras aparecem como contrapeso na busca demorada de um equilíbrio ou de um ordenamento meticuloso. Isto é tão evidente que, se fosse possível ao espectador retirar a figura ou o objeto da representação, uma outra obra lá permanecia, autónoma, com a sua própria expressão plástica mas, agora, já no mundo da abstração. Por considerar que esta renovada e refrescante visão à volta do contorno nos mostra e traz, para a área da pintura, uma diferente concepção estética e uma original expressão plástica, atrevo-me a dizer que, nos tempos áureos da arte moderna, da proliferação de estilos, correntes, movimentos, grupos e manifestos, este trabalho inovador poderia ser denominado e perpetuado com o nome de contornismo.
Este tema Contornos, que se estende ao longo da década de noventa (1992-1999), representa um conjunto de cerca de oitenta trabalhos, na sua maioria, acrílicos sobre tela, fazendo parte dele, também, diversos acrílicos sobre papel. É uma obra predominantemente figurativa, fortemente estilizada e depurada, nunca tendo sido a preocupação do autor incorporar nela, qualquer mensagem ou a apensar-lhe, qualquer simbolismo.
As formas que primam pelo elementarismo e depuração, estão inseridas, elas também, numa composição simples, sendo, muitas vezes, as cores, colocadas em contrastes complementares que aportam toda uma vivacidade e exuberância à obra. Essa exuberância e o esplendor trazidos por todo aquele entrelaçamento de traços, figuras, objectos e espaços, criaram um período exigente e dinâmico na obra de Pintomeira.  Esse período de longos e espessos traços contornantes colocados na tela ou no papel sem freio nem travão, constitui, até este momento, a fase mais inovadora do artista.
Observando, no entanto, os seus trabalhos mais recentes, essa exuberância de contornos e cores parece ter-se refreado, trazendo a representação para um palco mais próximo do espectador.
Novos elementos e outras formas fazem a sua entrada numa nova composição e nova expressão estética. A cor faz a sua integração, concilia-se e harmoniza-se para celebrar um outro caminho que se avizinha e que já é bem notório nestes últimos trabalhos: O Mês das Cerejas ou A Hora da Merenda. Os volumosos contornos, antes dominadores e omnipresentes que fizeram o seu percurso provocando e seduzindo o espectador, clamam agora por uma nova configuração. A autonomia e o território pelos quais eles pugnaram e lhes foram concedidos, nunca tiveram a chancela de eternidade.
Pintomeira continua, assim, a celebrar a nova ideia. Pode continuar, também, a levantar a sua taça e beber ao seu renascimento contínuo.
É o artista sempre fiel à sua assinatura, mas não querendo, eternamente, repetir-se.

Donald Meyer
Crítico de arte