2.10.14

Encontro com a natureza




A paisagem é um género pictórico que sempre ocupou um lugar secundário, sendo subestimado pela hierarquia académica até ao século XVIII. Durante a idade média e no renascimento, a paisagem surge como fundo de representações artísticas, divinas ou mitológicas, e não como a obra principal.
Giotto, no século XIV, ao trazer a perspectiva para a pintura, introduziu o espaço tridimensional, deixando para trás o fundo plano, muitas vezes dourado, do período bizantino sobre o qual eram pintadas representações sagradas. No entanto, mesmo em Giotto, a importância era sempre dada à figuração divina, aparecendo a paisagem como um fundo da obra ou espaço subordinado e suplementar mostrado em pequenos detalhes apresentados através de uma árvore, um pouco de céu, ou uma rocha, quase sempre pintados pelos seus ajudantes.
Só no século XVII, as academias passaram a considerar a paisagem como pintura de género, embora colocada em lugar de pouco destaque, remetida ainda para a função de pano de fundo das pinturas de história, de retrato ou outras. Foi na Holanda que ela adquiriu o seu estatuto de pintura de género, autónoma, e se afirmou como especialização artística, sendo então definida como a arte que representa cenas da natureza. A reforma protestante, o desenvolvimento do colecionismo e o aparecimento de uma sociedade burguesa constituída por ricos comerciantes, veio substituir a preferência do clero e da nobreza pelos temas do sagrado, da antiguidade clássica e da mitologia, pelos temas do quotidiano, menos complexos como a paisagem ou cenas de género. Assim, a paisagem adquiriu estatuto e autonomia iconográfica, constituindo-se como género autónomo, legitimado pelos trabalhos de alguns pintores holandeses, que a assumiram como motivo principal, trazendo para a tela cenas da natureza, como os polderes, moinhos de vento, canais, caminhos com árvores, florestas e outras representações. Destacaram-se neste género Meindert Hobbema, Salomon van Ruysdael, e Jan van Goyen.
É, finalmente, com a chegada das últimas décadas do século XIX e com ele o Impressionismo e o Pós-Impressionismo, que vai ser atribuído à paisagem o destaque que, até então, lhe tinha sido negado. O artista, querendo pintar as suas paisagens, passou a habitar a natureza, a trabalhar no meio dela e a depender dela para a sua criação artística. Paul Cézanne, Claude Monet, Pierre Auguste Renoir, Camille Pissaro e Van Gogh, entre outros, foram pintores que muito contribuíram para colocar o género paisagem em lugar de relevo na história da arte.
No século XX, a arte moderna, no seu auge, atribuiu-lhe muito pouca importância; a arte post-moderna ainda menos. Pintomeira iniciou a sua actividade artística no tempo do pós-modernismo, não tendo, por esse motivo, nenhuma ligação ou influência vinda do género paisagem. Ele nunca foi um paisagista, nunca se deixou excitar ou sensibilizar pela expressão estética trazida pelo género em causa. Tendo começado no surrealismo, compreende-se que, uma expressão artística que caminha lado a lado com a realidade, pretendendo imitar a natureza, não tenha despertado qualquer atracção ou arrebatamento no artista. Na sua geração, o género paisagem não era, longe disso, uma vanguarda, mesmo que alguns hiper-realistas a tenham pintado. Era, naquele tempo, (des)considerada uma ocupação mofenta ou um hobby dos chamados pintores de domingo. As salas dos museus e galerias prestigiadas não a reconheciam como arte vanguardista e não a mostravam. Por outro lado, nenhum artista conceituado a pintava ou lhe dava qualquer atenção. Ultimamente, e aparecendo como excepções, David Hockney e April Gornik, entre outros, muito poucos, mostraram-nos algumas excelentes paisagens.
Analisando todo o seu percurso até aos dias de hoje, pode concluir-se que Pintomeira nunca seguiu as tendências nem nunca se deixou enredar pelas preferências das galerias, rejeitando o mercado da arte e suas exigências que muitas vezes estrangulavam a liberdade criativa do artista.
E, senhor dessa liberdade, ele decidiu ter um encontro com a natureza. Afirmamos atrás que a paisagem nunca o arrebatou e que ele nunca foi um paisagista. E afirmamos a verdade. Mas, para ter essa certeza, ele, amante da natureza, tinha de a pintar, de a trazer para o seu atelier, e colocá-la na tela. E isso iria acontecer.
Baseado em algumas fotografias das planícies alentejanas,  obtidas por ele numa das viagens feitas ao seu país, Portugal, Pintomeira iniciou, no seu atelier em Amesterdão, uma experiência sobre a paisagem que iria resultar na criação de cerca de três dezenas de trabalhos. Todos eles pertencem hoje a colecções dispersas por diversos países, excepto uma que o artista fez questão de conservar, talvez para não deixar cair no esquecimento uma experiência não planeada e que, fortuitamente, aconteceu no seu atelier, tendo lá permanecido durante três anos, na década de oitenta.
Penso que, após uma observação demorada das suas fotografias, ele definiu a linguagem conceptual que melhor se ajustava a uma representação original e inovadora. Pintomeira optou por fazer uma análise estrutural da natureza das paisagens alentejanas e concluiu que o seu trabalho seria mais uma criação originada na racionalidade do que num qualquer estado de alma. Não era sua ideia imitar a natureza nem ser sensibilizado pelo seu belo intrínseco nem pelo seu bucolismo campestre, excluindo qualquer aproximação ao arcadismo.
A construção racional da expressão estética escolhida iria basear-se, ab initio, no imenso espaço-ar que a imagem da planície lhe oferecia. Embora, não respeitando nenhuma regra académica da perspectiva, a representação desse imenso espaço-ar, dessa enorme porção de atmosfera, seria trazida pela forte ilusão de profundidade expressa através de uma construção formal assente em traços, linhas, rectângulos e outras formas geométricas e numa construção cromática trazendo as cores quentes para a proximidade e remetendo os tons frios e indefinidos para o horizonte, produzindo a aparência de lonjura: Alentejo 7.  Dentro da concepção estética e formal pré estabelecida, a composição apresenta-se minimalista, sem a existência dos diversos elementos que normalmente preenchem uma paisagem: árvores, rios, pessoas, animais, etc. Esta foi a linha mestra a partir da qual ele estruturou a maioria destes seus trabalhos, havendo alguns que se distanciaram ligeiramente dela, apresentando elementos como o esboço de casas e uma ou outra representação de troncos de árvores, usados como linhas geométricas de composição,  mas nunca eliminando o conceito que foi determinado inicialmente: a forte apreensão de espaço e profundidade.
Pintomeira realizou o seu encontro com a natureza, oferecendo-nos esta expressão artística à volta da paisagem que, nunca tendo sido o seu género nas artes plásticas, longe disso, ele considerou uma inevitabilidade trazê-la para o seu atelier, onde a trabalhou, seguindo a sua própria concepção e assinatura.