21.10.14

Encontro com a natureza


Da Silhueta ao Pintor


Alberto A. Abreu
Historiador | escritor

Pintomeira, quando começou a pintar, já a história do homem ia bem andada, muito depois do regresso dos cativos da Babilónia. Aí ouvira contar, na grande cidade, que o mundo fora um jardim de delícias como o que foi pintado por Bosh, e havia água por todo o lado. Vivia-se em plenitude e os homens em concórdia total. É certo que só havia um casal nesse jardim delicioso, mas davam-se bem, homem e mulher viviam em harmonia, numa nudez total, sem restrições, nem tabus, nem ressentimentos. Um dia, porém, as coisas correram mal e o casal foi expulso. No desterro, fizeram e criaram filhos cultivando a pulso a terra, que tiveram de disputar aos animais primeiro, aos outros homens, depois.
Quando regressaram da Babilónia foi à força e como cativos. Desconfiavam dos outros homens: fecharam-se em casas e esconderam dos olhares as belezas e as disformidades de seus corpos. Houve quem os quisesse prender à megalópolis com promessas de bem-estar, de nova paz e concórdia, mas as pessoas tinham-se tornado coisas da sua independência e individualidade, convencidas de que os outros é que são os seus infernos. Preferiram sair da grande cidade, esforçar-se por suavizar o contacto com os outros e ajardinar o deserto.
A pintura de Pintomeira é este protesto, mas calmo, de independência, e de sel-governement com vista à humanização do mundo e da alteridade pelos próprios meios. Mas, para tanto, começou por investigar, por si, a genealogia das coisas. Logo descobriu primeiro que as delícias foram substituídas pelas tentações, os sonhos por pesadelos, os seres pelos fantasmas. Gastou toda uma juventude a investigar e a descobrir, e a passar à tela e mesmo ao papel a sobre realidade que ia desvelando no self e nos outros, nos homens e nas coisas. Onírico ou fantástico, era o Pintomeira profundo, com as suas fantasias e as suas frustrações, de Deocriste a Braga, a Viana, Lisboa, Paris e Amesterdão que escorria do pincel para a .ela ou para o cartão.
Descobriu depois que grande parte da felicidade primeira residira na nudez corpórea, como naquela que se exprime na franqueza com que lidamos com as pessoas. Os ícones que, a partir do contacto com o grupo CoBrA, lhe passaram a aflorar ao pincel foram os arquétipos duma perfeição primeva, puro a priori em cores simples, suaves e planas, mas todos eles refugiados em crisálida em que desesperadamente se fechavam e donde por nada aceitavam sair, nem como borboletas. Vestiram uma carapaça protectora quando foram expulsos do jardim, habituaram-se a defender-se dentro dela e sentiam receio de ficarem expostos se a despissem. Pássaros, mulheres manequim como estereótipos “pop”, de curtos cabelos negros ou longos como loiras, homens e animais, todos estilizados em formas geometrificadas, ficamos, nos quadros de Pintomeira, reduzidos à situação leibniziana de nómadas sem janelas, serenos no nosso isolamento onde ninguém nos incomoda, mas incomunicantes,
Hoje, de tudo isso, só nos resta o contorno: Pintomeira desenha (melhor, desenha-se) livremente, sobre uma tela colorida com cores planas em acrílico laboriosamente espalhado, silhuetas (ele mesmo simplificado até grafismos de silhuetas) de bois, aves, gatos, rostos de mulher. Como em Altamira ou como na caverna de Platão, o dado primeiro é a composição: as anfractuosidades rupestres então, agora rectângulos de cores simples, planas, bem equilibradas umas com as outras. E, como o cro-magnóide que se pintou como bisonte, em tectiformes ou como Bos primigenius, Pintomeira faz a catarse dos fantasmas que lhe povoam a alma - os bons e os maus – a começar pela própria necessidade de desenhar que tem de ser imperiosamente satisfeita.
A obra de Pintomeira retoma todo um mundo de sugestões que remontam ao Magdalenense, a Platão, a versão iavista do primeiro livro da bíblia, à moral budista, até ao angustiado presente em que nascemos, que Sarte identificou com o “inferno” e que Heidegger viu como caminho para a morte, ladeado de muros de casas fechadas dentro das quais a custo se adivinham alguns rostos velados.
A primeira síntese proteica só sobreviveu quando segregou, do seu próprio tecido uma membrana protectora. Esta foi a sua defesa, mas poderia ter sido também a sua morte, por impossibilidade de se alimentar (já que é preciso abrirmo-nos ao alimento, mesmo que seja para o destruirmos dentro de nós), e poderia ter sido também o fim dessa vida nascente por impossibilidade de reprodução. O amor, a primeira coisa que faz é vencer barreiras, arrancar carapaças. Um ritual erótico começa sempre pelo mútuo stripping dos amantes. Pintomeira conseguiu descobrir duas coisas contraditórias: a serenidade edénica primeira e o revestimento que se seguiu à transgressão, como se a paz pudesse instalar-se após o fechamento de cada um dentro da sua concha, como o respectivo ícone por detrás do seu contorno, O contornismo acabou Pintomeira por o superar; só que, ao tentar destruí-lo, o que ficou foi o contorno, reduzido a ser a silhueta de si mesmo.
De facto, ao colocar-nos no domínio do “como se,” Pintomeira acaba por nos levar para o domínio da ficção. Sir Philip Sidney, tendo em vista a poesia, concluíra, depois de muito pensar, que, se é certo que a mimese artística se faz, até por ser mimese “hand in hand with nature,” ultrapassa-a “making things either better than nature bringeth forth, or quite anew”. E aqui temos a definição teórica da superação dos dados naturais por parte do artista, que se descobre dupla ou triplamente contornado até o contorno adquirir identidade icónica própria, e depois transparente sobre um mundo que dele só deixa transparecer a silhueta.
Figuras há efectivamente que, metidas em contornos, aí se deixaram ficar ou foram abandonadas para sempre, projectos de juventude que se esvaziaram até se reduzirem a esquemas flutuando entre sonhos, que os atravessam. Outros sobreviveram, mas apenas como formas depuradas, grafismos livres, farrapos colados, estereótipos “pop” projectados “sobre o fundo da caverna.” E, porque a “nature” que o artista pretendeu mimetificar provinha do seu próprio self, foi ele que se derramou nas pinturas é ele mesmo a pintura e é ele mesmo a superação dela e de si mesmo: “doeth grow in effect anather nature,” como Sir PhilipSidney lapidarmente também disse.
O tema da pintura de Pintomeira é Pintomeira, quem nela é retratado é Pintomeira; mas, por força do efeito poético sobre o objecto da poesia, quem dela sai “better” é Pintomeira.
E que sucede a quem vê, a quem analisa uma pintura de Pintomeira? O mesmo que acontece a quem lê Cervantes, que ri de Sancho sobre os infortúnios de seu amo; e se deixa empolgar com as suas aventuras. E, como no Quijote o sujeito com que deparamos é o próprio Cervantes na sua complexidade de leitor de novelas de cavalaria, de soldado fanfarrão e de sensato burguês, que nos põe com ele mesmo a rir de si mesmo, também aqui é o Pintomeira racional e calmo, fechado em si mesmo, mas ansioso de comunicar, que nos estende a mão para que lhe entremos pela alma dentro, aí nos sentemos à mesa dos seus gostos e bebamos do mesmo copo por onde ele bebe a poesia que tão bem sabe pintar.

Alberto A. Abreu
Historiador | escritor