Período Surrealista
Analisar a
passagem de Pintomeira pelo surrealismo é mergulhar no passado, já longínquo,
da sua carreira artística. Ela aconteceu, de uma maneira assumida entre 1970 e
1978. Depois da sua ligação a este movimento artístico, Pintomeira, como pintor
inovador e fecundo, produziu uma vasta série de outros temas, como, Nova Linha,
Contornos, Paisagem, Interiores, Faces, Outras Faces, Exteriores, Cutouts,
entre outros, para além da fotografia. Mas é a passagem do artista pelo
surrealismo que, aqui vamos analisar. É preciso recuar até à década de setenta
do século XX para entrarmos em contacto com a sua ligação a este movimento que
se propalou por todo o mundo ocidental, influenciando múltiplas linguagens e
formas de expressão. Descobrimos a convivência do autor com Mário Cesariny,
Raul Perez e outros ligados ao movimento surrealista português, aquando da sua
estada em Lisboa, entre 1966 e 1972. Influenciado por eles, o pintor começou,
nesses tempos, por frequentar um atelier colectivo na Mouraria e aí, desenhar e
pintar, sobre papel, alguns trabalhos figurativos, de uma imagética
surrealizante que, com outros colegas, mostrava e vendia nas então chamadas
exposições inconformistas, realizadas nos passeios do Rossio.
No
entanto, será em Paris e mais tarde em Amesterdão, a partir de 1972, que todas
as convenções e preconceitos irão ser repelidos para dar lugar a uma expressão
liberta de toda a preocupação racional e moral, partindo ao encontro da ideia do
escritor francês André Breton, conhecida como o automatismo psíquico, que ele
descreveu, desta maneira, no seu manifesto surrealista, saído em 1924: “...puro automatismo psíquico, em que, é
feita uma tentativa para se expressar tanto verbalmente, pela escrita ou por
qualquer outro meio, o verdadeiro funcionamento da mente. Aquilo que é ditado
pelo pensamento, sem nenhum controle da razão, excluindo qualquer tipo de
preocupação estética ou moral”. O surrealismo foi multidisciplinar, tendo
chegado às artes plásticas, à literatura, ao teatro e ao cinema. Mas, foi na
pintura que ele mais se destacou com as obras de Salvador Dali, Max Ernest,
René Magritte, Paul Delvaux, Marcel Duchamp e Man Ray, entre outros.
Pintomeira
esteve no surrealismo durante pouco tempo. Começou em Lisboa, mas, como já o
mencionamos, foi em Paris, através de um contacto mais próximo com a obra de
René Magritte e Paul Delvaux do surrealismo belga, e em Amesterdão, com o
mágico realismo de Carel Willink e Peter Koch que determinou a sua permanência,
durante os restantes anos da década de setenta, na exploração do mundo do inconsciente
e dos sonhos. A pintura, na capital holandesa, mostrava-se, naqueles anos,
através de outras correntes vanguardistas, como o Hiper Realismo, o Neo
Expressionismo e ainda a Pop Art. No entanto, Pintomeira não se deixou transportar
por essas vanguardas. Teimosamente, prosseguiu o seu caminho, mesmo sabendo que
o mundo artístico de Amesterdão lhe iria ser adverso, uma vez que nunca tinha
sido mimoseado pelas expressões estéticas deste movimento. No seu atelier, na
capital da Holanda, ele acabou por produzir um conjunto de obras surrealistas
que fizeram parte de diversas exposições, sendo a última realizada com a sua
participação no Salon 78, no Grand Palais des Beaux Arts de Paris, chamado
Metamorphoses em homenagem ao surrealista belga René Magritte. Com a sua
participação no Salon 78, o artista decidiu por um ponto final nesta sua viagem
através de uma corrente tão rica e tão enriquecedora que iria deixar uma marca,
embora subtil, mas inextinguível, em toda a sua obra futura. Os seus trabalhos
mais relevantes, produzidos no seu atelier em Amesterdão, são um conjunto de
óleos sobre tela, de diversas dimensões, de cores planas, densas e não primárias,
e outros sobre papel, utilizando lápis grafite, tinta da china, pastel,
aguadas, etc.
Nessa época,
a sua obra é baseada nos mais diversos temas. Dominam as construções de
expressão onírica, do sonho, da fantasia pura, onde se destaca a total
libertação da mente ao representar composições de uma imagética que flutua
sobre o real, sem nenhum respeito pela lógica ou pela razão. As amarras do
inconsciente libertam-se, permitindo que o pintor lance para a tela um conjunto
de imagens e visões que não possuem nenhum respeito nem relação com a
realidade. Essa liberdade de expressão absoluta, escapando ao total controle do
ego e da razão, estimula o autor, na sua divagação pelo mundo da fantasia. Pode
ver-se toda essa libertação na obra Sonâmbulo
Bailarino Alado, onde Pintomeira constrói um caminho que flutua sobre a
cidade e que termina abruptamente num pesado portão de ferro, entreaberto, com o
cadeado ainda fechado e com gigantescos ovos sobre as duas corpulentas colunas
que o ladeiam. Sobre o caminho, encontram-se cascas de um enorme ovo cerâmico e
um deslocado candeeiro urbano. No meio de tudo isto, caminha, em passo de
dança, uma figura alada, não sabendo o espectador por que razão ali se encontra,
nem para onde se dirige. Noutras obras, encontramos outras fontes que foram recorrentemente
procuradas pelo artista, como a mitologia greco-romana em Leda e o Cisne, Apolo e
Daphné, Io e a nuvem, ou a
bíblia em Regresso do filho pródigo,
Crucificação e Pietá. Outro elemento muito utilizado na sua construção formal e
simbólica seriam os ovos, “omne vivum ex ovo,” (tudo tem origem no ovo) em
Encenação da esfinge, Passeio da procura ou, no já referido, Sonâmbulo bailarino alado.
Em Amesterdão, o artista, muito
raramente, se deparava com eventos surrealistas pois, como já sublinhamos, esse
movimento não fez parte da cena artística holandesa. Nas frequentes visitas que
fazia ao Stedelijk Museum, o Museu de Arte Moderna da capital holandesa, onde
dominou o, mundialmente famoso, director artístico Rudi Fuchs, o pintor
raramente encontrou nas suas paredes uma obra de um conceituado surrealista. A
corrente próxima do surrealismo e que obteve uma importância relevante na
Holanda foi o Realismo Mágico. Pintomeira conheceu, no início da década de
setenta, Carel Willink (1900-1983), a figura mais proeminente daquela corrente.
Tendo convivido com ele e conhecendo bem a sua obra, não ficamos nada
surpreendidos quando descortinamos, em algumas obras surrealistas do artista,
laivos do mágico realista holandês. A representação formal e a construção de
fantasia mágica em Esfinge e as
ruinas em Amanhecer arruinado, são
dois exemplos do que, acima, afirmamos.
O historiador Alberto A. Abreu escreveu sobre o
surrealismo e sobre a obra surrealista de Pintomeira: “Foi das correntes estéticas (artísticas e poéticas) mais
apaixonadamente seguidas, mais duradouramente mantidas, mas quiça das mais
equivocamente explanadas. Como os barrocos, o pintor surrealista é
fundamentalmente poeta. Os objectos, elementos, fragmentos, cores, perspectivas
por ele descritos ou representados são passíveis duma semiologia quantas vezes
directa - são poesis picta ou pictura
poetica. Uma pintura surrealista - mesmo a dum cadavre exquis - é passível quase duma "tradução"
verbal. Por outro lado, também num quadro surrealista quem aparece é o próprio
pintor, verdadeira natura naturans dos objectos reais tor-nados objectos
pintados. De facto, o que dele próprio o pintor representa são os sonhos - que
numa visão psicanalítica exprimem a sobre-realidade onde se encontra o super ego, os ideais, aquilo que numa
perspectiva nietzscheana as normas sociais tem vindo a proibir e numa
perspectiva freudiana a castrar. O surrealismo reproduz um constructo onírico e
não o subcons-ciente: "surrealismo" é transliteração do francês "surrealisme", que nunca
pretendeu ser "sub-" mas
efectivamente "sur-realisme”.
Por isso, o
surrealismo foi das correntes mais duradouras se não mesmo das mais
recorrentes: encontramos sugestões mais ou menos oníricas e sobre-reais em
Bosch, em Arcimboldi, em Goya, em Klee. Ligado ao Grupo COBRA, Pintomeira
começou por uma mimese poiética surrealista, que desenvolveu nos anos '70-79,
com ruínas, formas túrgidas sem rosto, corpos idealizados, perspectivas,
paisagens urbanas de fantasia, alguns dos ícones e objectos que retomara numa
fase mística recente e numa coeva de "imortalização" (diz ele) de
objectos. Estas pinturas, porém, para que a sua mensagem chegue até quem a
contempla, não podem padecer quaisquer disfunções e por isso são absolutamente
clássicas na forma”.
Em 1975, parte da sua obra
surrealista foi apresentada na cidade da sua adolescência, em Viana do Castelo.
Esta pequena cidade do norte de Portugal teve, pela primeira vez, contacto com
pinturas surrealistas. Pintomeira, a residir em Amesterdão, recebeu um convite
da Câmara Municipal, em funções naquele tempo, através do seu presidente e da
sua vereadora da cultura para, com uma exposição sua, inaugurar a Sala da
Cultura da cidade. Para que tal fosse possível, vinte e quatro obras
surrealistas saíram do seu atelier na Holanda, chegaram a Viana do Castelo e
aprontaram-se para ser expostas. Segundo noticiaram os jornais da região, a
exposição foi inaugurada com pompa e circunstância, despertando enorme
curiosidade no público que a visitou. A partir desse dia, a sala dos antigos
Paços do Concelho que antes estivera sempre fechada, passou a chamar-se Sala da
Cultura, continuando, até aos dias de hoje, aberta ao público e a ser palco de
diversas manifestações artísticas e literárias.
Pintomeira iria deixar o surrealismo
em 1978. Os seus últimos trabalhos já nos apresentam uma figuração diferente, menos
surrealizada, trazendo uma imagética já longe do onírico, do devaneante, como
em Nu na passerelle.
Seguindo outras tendências e partindo
para outras expressões estéticas, o artista deixou sempre, nos seus trabalhos
futuros, uma pequena marca surrealista, quer seja no desenho da figura quer
seja na construção formal da obra. Mais concretamente, ele nunca foi um
realista nos diversos temas produzidos após o seu período surrealista.
Luís Chaves
Crítico de Arte