7.9.14

Período Surrealista


Período Surrealista

Analisar a passagem de Pintomeira pelo surrealismo é mergulhar no passado, já longínquo, da sua carreira artística. Ela aconteceu, de uma maneira assumida entre 1970 e 1978. Depois da sua ligação a este movimento artístico, Pintomeira, como pintor inovador e fecundo, produziu uma vasta série de outros temas, como, Nova Linha, Contornos, Paisagem, Interiores, Faces, Outras Faces, Exteriores, Cutouts, entre outros, para além da fotografia. Mas é a passagem do artista pelo surrealismo que, aqui vamos analisar. É preciso recuar até à década de setenta do século XX para entrarmos em contacto com a sua ligação a este movimento que se propalou por todo o mundo ocidental, influenciando múltiplas linguagens e formas de expressão. Descobrimos a convivência do autor com Mário Cesariny, Raul Perez e outros ligados ao movimento surrealista português, aquando da sua estada em Lisboa, entre 1966 e 1972. Influenciado por eles, o pintor começou, nesses tempos, por frequentar um atelier colectivo na Mouraria e aí, desenhar e pintar, sobre papel, alguns trabalhos figurativos, de uma imagética surrealizante que, com outros colegas, mostrava e vendia nas então chamadas exposições inconformistas, realizadas nos passeios do Rossio.
No entanto, será em Paris e mais tarde em Amesterdão, a partir de 1972, que todas as convenções e preconceitos irão ser repelidos para dar lugar a uma expressão liberta de toda a preocupação racional e moral, partindo ao encontro da ideia do escritor francês André Breton, conhecida como o automatismo psíquico, que ele descreveu, desta maneira, no seu manifesto surrealista, saído em 1924: ...puro automatismo psíquico, em que, é feita uma tentativa para se expressar tanto verbalmente, pela escrita ou por qualquer outro meio, o verdadeiro funcionamento da mente. Aquilo que é ditado pelo pensamento, sem nenhum controle da razão, excluindo qualquer tipo de preocupação estética ou moral”. O surrealismo foi multidisciplinar, tendo chegado às artes plásticas, à literatura, ao teatro e ao cinema. Mas, foi na pintura que ele mais se destacou com as obras de Salvador Dali, Max Ernest, René Magritte, Paul Delvaux, Marcel Duchamp e Man Ray, entre outros.
Pintomeira esteve no surrealismo durante pouco tempo. Começou em Lisboa, mas, como já o mencionamos, foi em Paris, através de um contacto mais próximo com a obra de René Magritte e Paul Delvaux do surrealismo belga, e em Amesterdão, com o mágico realismo de Carel Willink e Peter Koch que determinou a sua permanência, durante os restantes anos da década de setenta, na exploração do mundo do inconsciente e dos sonhos. A pintura, na capital holandesa, mostrava-se, naqueles anos, através de outras correntes vanguardistas, como o Hiper Realismo, o Neo Expressionismo e ainda a Pop Art. No entanto, Pintomeira não se deixou transportar por essas vanguardas. Teimosamente, prosseguiu o seu caminho, mesmo sabendo que o mundo artístico de Amesterdão lhe iria ser adverso, uma vez que nunca tinha sido mimoseado pelas expressões estéticas deste movimento. No seu atelier, na capital da Holanda, ele acabou por produzir um conjunto de obras surrealistas que fizeram parte de diversas exposições, sendo a última realizada com a sua participação no Salon 78, no Grand Palais des Beaux Arts de Paris, chamado Metamorphoses em homenagem ao surrealista belga René Magritte. Com a sua participação no Salon 78, o artista decidiu por um ponto final nesta sua viagem através de uma corrente tão rica e tão enriquecedora que iria deixar uma marca, embora subtil, mas inextinguível, em toda a sua obra futura. Os seus trabalhos mais relevantes, produzidos no seu atelier em Amesterdão, são um conjunto de óleos sobre tela, de diversas dimensões, de cores planas, densas e não primárias, e outros sobre papel, utilizando lápis grafite, tinta da china, pastel, aguadas, etc.
Nessa época, a sua obra é baseada nos mais diversos temas. Dominam as construções de expressão onírica, do sonho, da fantasia pura, onde se destaca a total libertação da mente ao representar composições de uma imagética que flutua sobre o real, sem nenhum respeito pela lógica ou pela razão. As amarras do inconsciente libertam-se, permitindo que o pintor lance para a tela um conjunto de imagens e visões que não possuem nenhum respeito nem relação com a realidade. Essa liberdade de expressão absoluta, escapando ao total controle do ego e da razão, estimula o autor, na sua divagação pelo mundo da fantasia. Pode ver-se toda essa libertação na obra Sonâmbulo Bailarino Alado, onde Pintomeira constrói um caminho que flutua sobre a cidade e que termina abruptamente num pesado portão de ferro, entreaberto, com o cadeado ainda fechado e com gigantescos ovos sobre as duas corpulentas colunas que o ladeiam. Sobre o caminho, encontram-se cascas de um enorme ovo cerâmico e um deslocado candeeiro urbano. No meio de tudo isto, caminha, em passo de dança, uma figura alada, não sabendo o espectador por que razão ali se encontra, nem para onde se dirige. Noutras obras, encontramos outras fontes que foram recorrentemente procuradas pelo artista, como a mitologia greco-romana em Leda e o Cisne, Apolo e Daphné, Io e a nuvem, ou a bíblia em Regresso do filho pródigo, Crucificação e Pietá. Outro elemento muito utilizado na sua construção formal e simbólica seriam os ovos, “omne vivum ex ovo,” (tudo tem origem no ovo) em Encenação da esfinge, Passeio da procura ou, no já referido, Sonâmbulo bailarino alado.
Em Amesterdão, o artista, muito raramente, se deparava com eventos surrealistas pois, como já sublinhamos, esse movimento não fez parte da cena artística holandesa. Nas frequentes visitas que fazia ao Stedelijk Museum, o Museu de Arte Moderna da capital holandesa, onde dominou o, mundialmente famoso, director artístico Rudi Fuchs, o pintor raramente encontrou nas suas paredes uma obra de um conceituado surrealista. A corrente próxima do surrealismo e que obteve uma importância relevante na Holanda foi o Realismo Mágico. Pintomeira conheceu, no início da década de setenta, Carel Willink (1900-1983), a figura mais proeminente daquela corrente. Tendo convivido com ele e conhecendo bem a sua obra, não ficamos nada surpreendidos quando descortinamos, em algumas obras surrealistas do artista, laivos do mágico realista holandês. A representação formal e a construção de fantasia mágica em Esfinge e as ruinas em Amanhecer arruinado, são dois exemplos do que, acima, afirmamos.
O historiador Alberto A. Abreu escreveu sobre o surrealismo e sobre a obra surrealista de Pintomeira: “Foi das correntes estéticas (artísticas e poéticas) mais apaixonadamente seguidas, mais duradouramente mantidas, mas quiça das mais equivocamente explanadas. Como os barrocos, o pintor surrealista é fundamentalmente poeta. Os objectos, elementos, fragmentos, cores, perspectivas por ele descritos ou representados são passíveis duma semiologia quantas vezes directa - são poesis picta ou pictura poetica. Uma pintura surrealista - mesmo a dum cadavre exquis - é passível quase duma "tradução" verbal. Por outro lado, também num quadro surrealista quem aparece é o próprio pintor, verdadeira natura naturans dos objectos reais tor-nados objectos pintados. De facto, o que dele próprio o pintor representa são os sonhos - que numa visão psicanalítica exprimem a sobre-realidade onde se encontra o super ego, os ideais, aquilo que numa perspectiva nietzscheana as normas sociais tem vindo a proibir e numa perspectiva freudiana a castrar. O surrealismo reproduz um constructo onírico e não o subcons-ciente: "surrealismo" é transliteração do francês "surrealisme", que nunca pretendeu ser "sub-" mas efectivamente "sur-realisme”.
Por isso, o surrealismo foi das correntes mais duradouras se não mesmo das mais recorrentes: encontramos sugestões mais ou menos oníricas e sobre-reais em Bosch, em Arcimboldi, em Goya, em Klee. Ligado ao Grupo COBRA, Pintomeira começou por uma mimese poiética surrealista, que desenvolveu nos anos '70-79, com ruínas, formas túrgidas sem rosto, corpos idealizados, perspectivas, paisagens urbanas de fantasia, alguns dos ícones e objectos que retomara numa fase mística recente e numa coeva de "imortalização" (diz ele) de objectos. Estas pinturas, porém, para que a sua mensagem chegue até quem a contempla, não podem padecer quaisquer disfunções e por isso são absolutamente clássicas na forma”. 
Em 1975, parte da sua obra surrealista foi apresentada na cidade da sua adolescência, em Viana do Castelo. Esta pequena cidade do norte de Portugal teve, pela primeira vez, contacto com pinturas surrealistas. Pintomeira, a residir em Amesterdão, recebeu um convite da Câmara Municipal, em funções naquele tempo, através do seu presidente e da sua vereadora da cultura para, com uma exposição sua, inaugurar a Sala da Cultura da cidade. Para que tal fosse possível, vinte e quatro obras surrealistas saíram do seu atelier na Holanda, chegaram a Viana do Castelo e aprontaram-se para ser expostas. Segundo noticiaram os jornais da região, a exposição foi inaugurada com pompa e circunstância, despertando enorme curiosidade no público que a visitou. A partir desse dia, a sala dos antigos Paços do Concelho que antes estivera sempre fechada, passou a chamar-se Sala da Cultura, continuando, até aos dias de hoje, aberta ao público e a ser palco de diversas manifestações artísticas e literárias.
Pintomeira iria deixar o surrealismo em 1978. Os seus últimos trabalhos já nos apresentam uma figuração diferente, menos surrealizada, trazendo uma imagética já longe do onírico, do devaneante, como em Nu na passerelle.
Seguindo outras tendências e partindo para outras expressões estéticas, o artista deixou sempre, nos seus trabalhos futuros, uma pequena marca surrealista, quer seja no desenho da figura quer seja na construção formal da obra. Mais concretamente, ele nunca foi um realista nos diversos temas produzidos após o seu período surrealista.

Luís Chaves
Crítico de Arte