Da
Silhueta ao Pintor
Alberto A. Abreu
Historiador | escritor
Pintomeira, quando começou a pintar, já a
história do homem ia bem andada, muito depois do regresso dos cativos da
Babilónia. Aí ouvira contar, na grande cidade, que o mundo fora um jardim de
delícias como o que foi pintado por Bosh, e havia água por todo o lado.
Vivia-se em plenitude e os homens em concórdia total. É certo que só havia um
casal nesse jardim delicioso, mas davam-se bem, homem e mulher viviam em
harmonia, numa nudez total, sem restrições, nem tabus, nem ressentimentos. Um
dia, porém, as coisas correram mal e o casal foi expulso. No desterro, fizeram
e criaram filhos cultivando a pulso a terra, que tiveram de disputar aos
animais primeiro, aos outros homens, depois.
Quando regressaram da Babilónia foi à
força e como cativos. Desconfiavam dos outros homens: fecharam-se em casas e
esconderam dos olhares as belezas e as disformidades de seus corpos. Houve quem
os quisesse prender à megalópolis com promessas de bem-estar, de nova paz e
concórdia, mas as pessoas tinham-se tornado coisas da sua independência e
individualidade, convencidas de que os outros é que são os seus infernos.
Preferiram sair da grande cidade, esforçar-se por suavizar o contacto com os
outros e ajardinar o deserto.
A pintura de Pintomeira é este protesto,
mas calmo, de independência, e de sel-governement com vista à humanização do
mundo e da alteridade pelos próprios meios. Mas, para tanto, começou por
investigar, por si, a genealogia das coisas. Logo descobriu primeiro que as
delícias foram substituídas pelas tentações, os sonhos por pesadelos, os seres
pelos fantasmas. Gastou toda uma juventude a investigar e a descobrir, e a
passar à tela e mesmo ao papel a sobre realidade que ia desvelando no self e
nos outros, nos homens e nas coisas. Onírico ou fantástico, era o Pintomeira
profundo, com as suas fantasias e as suas frustrações, de Deocriste a Braga, a
Viana, Lisboa, Paris e Amesterdão que escorria do pincel para a .ela ou para o
cartão.
Descobriu depois que grande parte da
felicidade primeira residira na nudez corpórea, como naquela que se exprime na
franqueza com que lidamos com as pessoas. Os ícones que, a partir do contacto
com o grupo CoBrA, lhe passaram a aflorar ao pincel foram os arquétipos duma
perfeição primeva, puro a priori em cores simples, suaves e planas, mas todos
eles refugiados em crisálida em que desesperadamente se fechavam e donde por
nada aceitavam sair, nem como borboletas. Vestiram uma carapaça protectora
quando foram expulsos do jardim, habituaram-se a defender-se dentro dela e sentiam
receio de ficarem expostos se a despissem. Pássaros, mulheres manequim como
estereótipos “pop”, de curtos cabelos negros ou longos como loiras, homens e
animais, todos estilizados em formas geometrificadas, ficamos, nos quadros de
Pintomeira, reduzidos à situação leibniziana de nómadas sem janelas, serenos no
nosso isolamento onde ninguém nos incomoda, mas incomunicantes,
Hoje, de tudo isso, só nos resta o
contorno: Pintomeira desenha (melhor, desenha-se) livremente, sobre uma tela
colorida com cores planas em acrílico laboriosamente espalhado, silhuetas (ele
mesmo simplificado até grafismos de silhuetas) de bois, aves, gatos, rostos de
mulher. Como em Altamira ou como na caverna de Platão, o dado primeiro é a
composição: as anfractuosidades rupestres então, agora rectângulos de cores
simples, planas, bem equilibradas umas com as outras. E, como o cro-magnóide
que se pintou como bisonte, em tectiformes ou como Bos primigenius, Pintomeira
faz a catarse dos fantasmas que lhe povoam a alma - os bons e os maus – a
começar pela própria necessidade de desenhar que tem de ser imperiosamente
satisfeita.
A obra de Pintomeira retoma todo um mundo
de sugestões que remontam ao Magdalenense, a Platão, a versão iavista do
primeiro livro da bíblia, à moral budista, até ao angustiado presente em que
nascemos, que Sarte identificou com o “inferno” e que Heidegger viu como
caminho para a morte, ladeado de muros de casas fechadas dentro das quais a
custo se adivinham alguns rostos velados.
A primeira síntese proteica só sobreviveu
quando segregou, do seu próprio tecido uma membrana protectora. Esta foi a sua
defesa, mas poderia ter sido também a sua morte, por impossibilidade de se
alimentar (já que é preciso abrirmo-nos ao alimento, mesmo que seja para o destruirmos
dentro de nós), e poderia ter sido também o fim dessa vida nascente por
impossibilidade de reprodução. O amor, a primeira coisa que faz é vencer
barreiras, arrancar carapaças. Um ritual erótico começa sempre pelo mútuo
stripping dos amantes. Pintomeira conseguiu descobrir duas coisas contraditórias:
a serenidade edénica primeira e o revestimento que se seguiu à transgressão,
como se a paz pudesse instalar-se após o fechamento de cada um dentro da sua
concha, como o respectivo ícone por detrás do seu contorno, O contornismo acabou
Pintomeira por o superar; só que, ao tentar destruí-lo, o que ficou foi o
contorno, reduzido a ser a silhueta de si mesmo.
De facto, ao colocar-nos no domínio do
“como se,” Pintomeira acaba por nos levar para o domínio da ficção. Sir Philip
Sidney, tendo em vista a poesia, concluíra, depois de muito pensar, que, se é
certo que a mimese artística se faz, até por ser mimese “hand in hand with
nature,” ultrapassa-a “making things either better than nature bringeth forth,
or quite anew”. E aqui temos a definição teórica da superação dos dados
naturais por parte do artista, que se descobre dupla ou triplamente contornado
até o contorno adquirir identidade icónica própria, e depois transparente sobre
um mundo que dele só deixa transparecer a silhueta.
Figuras há efectivamente que, metidas em
contornos, aí se deixaram ficar ou foram abandonadas para sempre, projectos de
juventude que se esvaziaram até se reduzirem a esquemas flutuando entre sonhos,
que os atravessam. Outros sobreviveram, mas apenas como formas depuradas,
grafismos livres, farrapos colados, estereótipos “pop” projectados “sobre o
fundo da caverna.” E, porque a “nature” que o artista pretendeu mimetificar
provinha do seu próprio self, foi ele que se derramou nas pinturas é ele mesmo
a pintura e é ele mesmo a superação dela e de si mesmo: “doeth grow in effect
anather nature,” como Sir PhilipSidney lapidarmente também disse.
O tema da pintura de Pintomeira é
Pintomeira, quem nela é retratado é Pintomeira; mas, por força do efeito
poético sobre o objecto da poesia, quem dela sai “better” é Pintomeira.
E que sucede a quem vê, a quem analisa
uma pintura de Pintomeira? O mesmo que acontece a quem lê Cervantes, que ri de
Sancho sobre os infortúnios de seu amo; e se deixa empolgar com as suas
aventuras. E, como no Quijote o sujeito com que deparamos é o próprio Cervantes
na sua complexidade de leitor de novelas de cavalaria, de soldado fanfarrão e
de sensato burguês, que nos põe com ele mesmo a rir de si mesmo, também aqui é
o Pintomeira racional e calmo, fechado em si mesmo, mas ansioso de comunicar,
que nos estende a mão para que lhe entremos pela alma dentro, aí nos sentemos à
mesa dos seus gostos e bebamos do mesmo copo por onde ele bebe a poesia que tão
bem sabe pintar.
Alberto A. Abreu
Historiador | escritor