Pintomeira
Artista Plástico . Ensaísta
escrito segundo
as regras do anterior acordo ortográfico
Em Abril de
1977, a directora da Israel Galerie Linka, situada no Prinsengracht, 690, em
Amesterdão, Holanda, após ter analisado o meu portfólio, entrou em contacto
comigo, propondo uma visita ao meu atelier, situado, também, na capital
holandesa, para ver os trabalhos originais e aquilatar da sua qualidade.
Aceitei a sugestão. Naquela altura, eu preparava uma exposição que iria ser
inaugurada, na Galerie Entremonde, em Paris, em Fevereiro de 1978.
A visita
aconteceu passados alguns dias, tendo a directora da galeria observado,
atentamente, cerca de uma dezena de obras já prontas para a mostra em Paris.
Após a sua apreciação, e sendo esta do seu agrado, foi feita uma proposta para
uma exposição, na sua galeria. As condições apresentadas foram as seguintes:
feitura de um catálogo, vernissage, a presença de convidados, entre os quais
estaria o embaixador de Portugal na Holanda, a garantia de venda de obras e a
respectiva percentagem, 40%. Tudo isto correspondia ou ultrapassava as minhas
expectativas. Só que o último requisito que me foi apresentado, acabou por me
surpreender: o pagamento antecipado, à galeria, de 10.000 florins (então moeda
holandesa), cerca de 5.000 euros, para suportar as despesas com a realização da
exposição. Não aceitei tal encargo. Considerei que a percentagem sobre a venda
das obras serviria para sustentar tais despesas, o que era habitual e me
parecia razoável. Mostrando, espontaneamente, e sem qualquer entrave ou reserva,
a minha indignação por tal aproveitamento financeiro imediato de 5.000 euros,
declinei, frontalmente, o convite.
Nessa
altura, era de grande importância cimentar a minha carreira artística, através
de uma exposição numa Galeria conceituada de Amesterdão. Tinha consciência
disso. Sabia, também, que a venda de algumas ou todas as obras expostas poderia
suportar tal pagamento antecipado. No entanto, aquela minha desaprovação e
consequente recusa, lançou, naquele momento, a semente, que mais tarde, deu origem
a uma visão pessoal e a uma avaliação muito negativa sobre estas galerias e os
seus art dealers: a suspeição e o desabono. Declaro que, apesar desta
desagradável experiência, realizei, nos anos seguintes e com sucesso, algumas
exposições noutras galerias. Estas, não ostentando tanto poder no mercado da
arte e não praticando a cultura do lucro imediato, possuíam o ethos e o pathos
na convivência, na relação pessoal e a competência na realização de exposições.
No entanto, a experiência com aquela controversa proposta da Israel Galerie
Linka de Amesterdão persistiu na minha mente, fazendo crescer a minha
depreciação pelos galeristas e art dealers e o consequente desinteresse em
mostrar os meus trabalhos nos seus espaços.
Neste meu
escrito, irei sempre fazer alusão àquele galerista que pretende ser o grande
fazedor e lançador de talentos. Umas vezes, ostentando jactância e prosápia,
outras vezes, presunção. Jean Clair1, membro da Academia Francesa,, escreveu:
... “a falta de cultura e de gosto de muitos directores de instituições
(museus, galerias, bienais) deu origem a uma passividade e acomodação, criando
uma situação onde a obra se reduziu a uma divertida espuma da arte”. O
artista, aquele que trabalha para criar as suas obras, impelido por uma ânsia e
entusiasmo legítimos para as mostrar a um vasto público, é secundarizado, como
que proscrito perante a altivez e os falsos convénios feitos com o seu patrono.
O nome da sua galeria (muitas vezes o seu próprio), as salas onde recebe o
público e as suas paredes onde as obras estão expostas, constituem o seu
sacrossanto e venerável tabernáculo perante o qual o artista deverá usar o
genuflexório, reclinando-se e agradecendo o privilégio de ali poder expor.
Estes emproados art dealers avisam, constantemente, o artista para a relevante
função que as suas galerias desempenham na sua carreira e quão importantes eles
são no seu sucesso, podendo, daqui inferir-se a menorização do próprio artista
não validando a sua competência e a sua capacidade criativa. Como refere Rui
Pedro Fonseca2,: “o artista não pode jamais beliscar quem o publicita ou
quem o consagra: há, portanto, que saber jogar com os próprios limites da
liberdade delimitados pelos agentes e pelas instituições.”
Estes
galeristas, art dealers e seus correligionários fazem parte de um complexo
sistema de mercado que, ao procurar orientar e regular o artista, acabam por
impedir que ele se exprima e se desenvolva livremente. Além disso, estou certo
de que, se ele não tiver essa pressão nem a intencionalidade de agradar ao
mercado, o artista, na solidão do seu estúdio/atelier, provido da formação e
capacidade técnica que obteve e munido das ferramentas que ele próprio
adquiriu, poderá criar, sobre uma tela despida, a partir de um bloco de pedra
bruta ou de outras matérias, uma obra de arte caracterizada pela sua
assinatura, originalidade e unicidade. Uma vez mais, Rui Pedro Fonseca3: “A
necessidade de total sobrevivência dentro do mercado da arte tende a conduzir o
artista a produzir de modo a que o seu trabalho respeite determinados padrões
morais e estéticos, tornando-se, involuntariamente ou inconscientemente, no
porta voz dos seus compradores e protectores, cuja elevada posição não pode
jamais ser beliscada.”
Digo que,
nunca, algo de sublime foi criado sem paixão, liberdade e independência.
Compreendo, embora com dificuldade, a comodidade e o conforto que um artista
sente quando trabalha sob o amparo, embora fingido, e as incertas promessas do
seu galerista. Acredito que, actualmente, nenhum artista queira ser como um
Vincent van Gogh do seu tempo (Arles e Saint Remy). A procura pelo
reconhecimento rápido, sem ter produzido obra para tal e a avidez pela fama
fácil angariada pela submissão às regras do mercado impostas pelo galerista
mercantil e seus comparsas, converte o artista num embuste e despe-o da sua
autenticidade. No ensaio “É urgente autopsiar a bexiga da arte moribunda”4,
escrevi: “este sistema que alimenta um dissimulado e enganoso ambiente
artístico é, agora, capaz de transformar um qualquer “instalador” ou
“constructor” numa pessoa famosa e endinheirada, mas é incapaz de fazer dele um
artista”.
O
filistinismo de muitos galeristas, curadores e directores das instituições é
notório e abrange, também, muitos críticos e fazedores de crónica artística
fácil que vão ufanando e louvando os primeiros. Outros críticos de arte,
parecendo mais independentes e mais acintosos, caminham, mesmo assim, de mãos
dadas na mesma procissão, aparentando sublinhar que todos eles, quando
palavreiam sobre o ambiente artístico, pensam ser este incompreensível para
todos, excepto para eles, praticando o auto-elogio em grupo. Pateticamente, só
eles sabem que só eles o compreendem. Alguns há que, caminhando sobre um
asfalto diferente, me incentivam e entusiasmam a referir e a homenagear, aqui:
entre outros, os americanos Clement Greenberg, David Hickey e Jerry Saltz, o
francês Jean Clair, os ingleses John Berger e Julian Spalding e os portugueses
Fernando Pernes, José Augusto França e José Luis Ferreira.
Não querendo
sair da essência deste ensaio, retomo o afirmado no início: a minha visão muito
pessoal, formada no passado, sobre os galeristas, curadores e art dealers e
sustentada na relação profissional (exposições) e na relação contractual e
comercial (mercantilismo), tendo daí restado, como acima já mencionado, a
suspeição e o desabono. A minha exposição na Galerie Entremonde, em Paris, em
1978, embora com razoável sucesso, terá suscitado os primeiros sinais de
renúncia que, embora débeis, confirmaram, em termos de relacionamento e
mercantilismo, a minha incredulidade percebida, alguns meses antes, na
experiência tida com a Israel Galerie Linka, em Amesterdão. Durante os anos
seguintes, os meus trabalhos seriam, de preferência, exibidos em diversos
locais públicos e algumas instituições privadas sem fins lucrativos. No
entanto, o distanciamento final do deplorável mundo dessas galerias, desses
galeristas e art dealers, aconteceu somente em 2000, aquando da minha exposição
“Outlines” na Gallery 66, na Stadhouderskade, em Amesterdão. A referida Galeria
viria a fechar, poucos anos depois, segundo rumores de actividades ilícitas
perpetradas pelo seu director.
No sentido
estrito da cultura, da erudição, conhecimento e educação, é a existência de uma
galeria de arte, importante, a não ser para um grupo elitista e alguns
acólitos? Não é importante. Neste enquadramento, é um museu de arte mais
importante? É muito mais importante. Qual é o propósito primeiro de uma galeria
comercial? Na sua maioria, será vender obras de arte e daí adquirir benefícios
financeiros. Nada de errado. Contudo, para isso precisará de artistas, uns
convidados, outros com obras em consignação e outros com acordo contratual
escrito, por vezes, muito complexo e de cumprimento duvidoso. Saliento que,
normalmente, o galerista não tem capacidade técnica nem criativa para produzir
obras de arte.
São as galerias de arte (convencionais) dispensáveis? Não são,
na sua generalidade. Não sendo dispensáveis, elas só serão úteis se tiverem
acesso a obras de arte e a artistas que as produzam. E aqui começa o seu ponto
crítico e uma conduta censurável. Os galeristas, art dealers e curadores de
galerias, ditas de prestígio, com ligações a colecionadores e mercados
habituais, e tendo na procissão o andor dos fazedores de crónica artística de
adulação, colocam-se no altar da veneração ou na mesa do auto-elogio ou o
elogio interpares, atribuindo-se-lhes o mérito da pesca de talentos ou a
descoberta de brilhantes emergentes que, uma vez aproveitados e deixando de ser
rentáveis, imergem na escuridão do mais profundo oceano. Existem duas relações
distintas entre galerista e artista, embora, ambas com o mesmo fim: o primado
do interesse comercial com a intenção de obter lucros rápidos e excessivos
(mercantilismo). Cinicamente, alguns “experts” estão focados, exclusivamente,
no mercado e nos benefícios financeiros.
Voltando às
relações, temos uma entre galerista de prestígio/artista A, a
outra entre galerista de prestígio/artista B. Esta bipartição só define
e, sempre em termos do especulativo mercado da arte, que um artista é mais
cotado que o outro. O dito galerista de prestígio, muitas vezes, o filisteu da
cultura, com ligações ao mercado ganancioso e, raras vezes, dotado de qualquer
aptidão e critério apreciativo da obra de arte e, eventualmente, movido por
força de uma relação pessoal, relação de favor ou empatia, decide valorizar a
obra do artista A. Este, provavelmente, menos talentoso e com menor
capacidade criativa que o artista B, entra, mais facilmente, com a
duvidosa chancela do galerista, no circuito comercial artístico, dos
colecionadores e no sinistro sistema instalado que o irá favorecer na escolha
para a participação em bienais de prestígio, na aquisição das suas obras pela
verba afecta ao Ministério da Cultura de 500 mil euros através da colecção de
arte contemporânea e na atribuição de projectos para a realização de obra em
espaços urbanos.
Sobre esta última apreciação, trago aqui dois fiascos pagos
com dinheiros do erário público: o enorme fracasso do cacilheiro Trafaria Praia
de Joana Vasconcelos e a Linha do Mar de Cabrita Reis, este último duramente criticado e
rejeitado pela população local e pouco ou nada louvado pela maioria do mundo
artístico.
Nos dias de hoje, museus e galerias influentes, raramente procuram
os trabalhos do artista que, isolado no seu estúdio/atelier, tenta explorar
aquela ideia ou visão que chegou à sua mente e, numa labuta física e
intelectual, espera que, desse labor, nasça uma séria e meritória obra de arte.
Ao proferir esta declaração, quero proclamar, com firmeza, que não sou
anacrónico nem misoneísta, antes denuncio a falta de gosto e o já supracitado
filistinismo dos responsáveis (galeristas, curadores, directores artísticos)
desses espaços expositivos quando dão preferência à efemeridade de trabalhos
indiligentes ou a qualquer desmesurado objecto, saído de um espaço industrial,
produzido por carpinteiros, serralheiros e bordadeiras que, muitas vezes, só
chama a atenção por ser gigantesco e nunca por ser inovador.
A galeria de
arte privada e comercial, como espaço arquitectónico que mostra e comercializa
arte, está já a caminho de dois séculos de existência, sendo, nesses tempos,
dirigida por marchands d’art, verdadeiros connoisseurs, eruditos e entendidos
em belas artes, algo que, raramente, acontece com os galeristas de hoje.
Assinalo, como relevantes, naqueles tempos, a Goupil&Cie5, onde trabalhou
Theodorus Van Gogh, irmão de Vincent Van Gogh, a Galerie Vollard6 de Ambroise
Vollard que deu a conhecer obras de Paul Cezanne, Paul Gauguin, Henri Matisse e
a Galeria Daniel-Henri Kahnweiler7, promotora do cubismo e que apresentou
artistas como Pablo Picasso e George Braque. Estamos longe desses tempos. Mas,
se a Galeria continua a ser um espaço arquitectónico onde se mostra e
comercializa arte, e a Pintura é, ainda, influenciada pelas obras de Pablo
Picasso e Henri Matisse, a maioria dos galeristas já não é hoje,
lamentavelmente, “tão” connoisseur d’art.
Tendo, no
início deste ensaio, afirmado a minha depreciação pelas práticas de certas e
bem identificadas galerias e art dealers e o consequente desinteresse em
realizar mostras nos seus espaços, onde exponho, então, as minhas obras? Com
mais de uma centena de exposições individuais efectuadas, a sua maioria, e
preferencialmente, foi mostrada ao público em espaços como, Museus Municipais,
Salas, Casas ou Centros Culturais e Galerias de Instituições Privadas, sem fins
lucrativos. Aos responsáveis por estes espaços expositivos, aqui, o meu
agradecimento por terem recebido e exibido as minhas obras.
Sou um não
alinhado, não presto vassalagem ao mercado e menosprezo a mercadoria,
principalmente o ocioso e debilitado conceptual, as inúteis efemeridades
instaladas, as construções industriais de dimensão gigantesca e outras
encomendas feitas, pelo sistema, a artistas “construtores”, indolentes e
farsantes, em tempos de desorientação e alienação no mundo da arte.
1 - membro
da Academia Francesa, conceituado ensaísta, escritor e historiador de arte
2 -
sociólogo, ISCTE-IUL“Entre o artista o patronato e a obra”
3 -
sociólogo, ISCTE-IUL “Entre o artista o patronato e a obra”